O único skipper solitário português

O jovem velejador Francisco Lobato participa pela segunda vez na célebre regata Transat 6.50, com largada em La Rochelle, França, escala na Madeira e meta em Salvador da Bahia, Brasil. São mais de quatro mil milhas a navegar sozinho pelo oceano Atlântico.
Publicado a
Atualizado a

No próximo dia 16 de Setembro, ao largo de La Rochelle, França, o único skipper solitário português estará novamente a cruzar a linha de largada de mais uma travessia oceânica, na Charente-Maritime/Bahia – Transat 6.50, uma rota de 4200 milhas (cerca de 7780 quilómetros) desde a costa francesa até ao porto de Salvador da Bahia, no Brasil, com uma escala no Funchal. Esta é a sua segunda participação neste clássico evento oceânico e desta vez Francisco Lobato quer fazer mais e melhor.

«A primeira vez que participei nesta travessia solitária acho que estava à partida exausto por ter feito demasiadas regatas prévias, o que me deu uma boa colocação no ranking mundial, mas desviou a minha concentração antes da travessia», afirma o skipper solitário, dizendo que também não soube gerir bem a adrenalina, o esforço e a competitividade.

Hoje com 25 anos, o lisboeta finalista do mestrado em Engenharia e Arquitectura Naval no Instituto Superior Técnico tem muito mais experiência desportiva, conhece melhor os rivais e especialmente o barco, rebaptizado Roff TMN. Sabe bem os seus limites e não precisa arriscar demasiado nem fazer uma navegação extrema. «O importante é chegar ao Funchal sem esforçar demasiado o barco ou a mim próprio, pois a primeira etapa, de França à Madeira, é apenas um prólogo. A travessia oceânica a valer será rumo ao Brasil e aí tenho de estar no meu melhor para vencer», adianta Lobato, que volta a disputar este evento com o objectivo de alcançar um lugar no pódio.

Francisco Lobato começou a velejar aos sete anos, mas na verdade fez a sua primeira viagem de barco até Gibraltar com apenas alguns meses de idade, em companhia do pai e do avô, velejadores veteranos. Os seus primeiros barcos foram das classes Optimist, 420 e Laser, quando se aperfeiçoava nos cursos da Associação Naval de Lisboa. Aos 11 anos participou num campeonato do mundo e foram vários os títulos de campeão nacional que obteve em diferentes classes de veleiros.

«Disputei 15 campeonatos do mundo e da Europa e conquistei uma medalha de bronze no campeonato europeu da classe olímpica Laser em 2004 e a medalha de ouro no campeonato sul-americano sub-21», recorda Lobato, que então começou a velejar pelos mares ao longo da costa atlântica e do Mediterrâneo – Norte de África, Madeira, Baleares e vários portos da costa espanhola.

A partir de 2005 iniciou-se na navegação em solitário, completando mais de duas mil milhas de percurso na costa portuguesa, durante a Volta a Portugal à Vela. Daí, partiu para o circuito internacional, disputando as regatas de qualificação para a Transat 6.50, registando logo uma vitória na primeira etapa da regata Les Sables-Açores-Les Sables, com 2600 milhas de percurso, ficando em 2.º lugar na classificação geral.

Sinceramente, é muito difícil navegar em solitário e no início fartava-me de vomitar e apanhava grandes sustos a bordo do veleiro Transat 6.50 emprestado por um amigo. Na primeira viagem que fiz de Lisboa a Sines, passei dez horas a vomitar. Mas então pensei – porque não hei-de ser capaz?», conta ele, acrescentando que desenvolveu um trabalho com um psicólogo no sentido de controlar melhor o corpo e a mente.

A atracção pela navegação em solitário venceu os medos e desconfortos e Lobato quis continuar a enfrentar o desafio e a adrenalina. «Além disso, acho muito interessante a pessoa ter de se multiplicar em várias habilidades, desde velejar, analisar a meteorologia, fazer a navegação e cuidar de tudo a bordo», confessa.

A meio da travessia oceânica em 2007, entre as Canárias e Cabo Verde, teve de realizar uma reparação nos lemes que nunca antes tinha sido tentada. «Consegui arranjar as ferragens do leme com o mínimo de ferramentas e materiais a bordo, serrando durante horas uma peça de inox até já não sentir os braços. Finalmente, consegui colocar o leme de volta na água, no meio de um mar agitado e sob ventos fortes, num esforço mental e físico muito grande», afirmou Lobato que cumpriu a rota total em 27 dias, 15 horas, 15 minutos e 21 segundos de navegação ao longo das 4200 milhas de percurso.

Mas o stress a bordo durante a travessia de vinte dias entre a Madeira e o Brasil foi ainda maior quando o velejador também viu o piloto automático principal falhar. «Cheguei a pensar que seria muito difícil continuar em prova, pois estava tudo a partir-se e passei dias a reparar as coisas», lembrou o velejador contando que os dois paus de spinnaker (peça metálica que sustenta a base da vela balão) também se partiram na passagem pelo equador, o que comprometeu a performance do veleiro e quase deitou por terra os três anos de preparação do atleta.

Além das avarias também a fadiga se foi instalando no corpo do navegador, já que as poucas horas de sono eram distribuídas aqui e ali, quando o tempo permitia. «Dormia quando podia, uns vinte minutos de manhã, outros tantos à tarde e mais um pouco à noite», revelou Lobato, dizendo que venceu o medo e o stress de navegar sozinho no mar. «Não temos outra opção a não ser resolver os problemas da melhor maneira possível.»

A clássica regata oceânica em solitário

A história da actual regata Charente-Maritime/Bahia – Transat 6.50 remonta a 1976, quando o inglês Bob Salmon, um skipper profissional, criou uma travessia oceânica ao alcance de todas as bolsas. Nascia então a ideia de utilizar barcos de 6,50 metros, menos caros e com orçamentos mais acessíveis, e o evento passou a atrair alguns dos navegadores solitários que se tornariam célebres ao longo dos anos – como o francês Bruno Peyron – o primeiro skipper a completar uma volta ao mundo em menos de oitenta dias em 1993 – e a jovem inglesa Ellen MacArthur, que iria tornar-se a mais famosa navegadora solitária da actualidade, conquistando recordes de circum-navegação em multicascos.

A primeira edição traçou uma rota entre a Inglaterra e Antigua, via Tenerife, nas Canárias, e 23 skippers solitários alinharam na largada, dos quais só 19 conseguiram terminar o percurso que custou 38 dias de navegação. Declarações, livros e entrevistas revelaram o amor pelo mar destes navegadores e o vencedor, Daniel Gilard, escreveu o livro que se tornaria a bíblia dos skippers solitários – Pequeno Golfinho na Pele de Um Diabo.
Em 2001, a prova passa a ser organizada pelo Grand Pavois e a regata Charente-Maritime/Bahia – Transat 6.50 inaugura um novo percurso desde França, a Lanzarote e Bahia, Brasil. Desde 2007, a rota tem sido marcada entre La Rochelle, França, com escala no Funchal e chegada em Salvador da Bahia, Brasil, perfazendo o total de 4200 milhas navegadas.

A longa rota pelo Atlântico

Com a largada marcada nas águas ao largo de La Rochelle, na costa atlântica de França, a rota de 4200 milhas da regata Charente-Maritime/Bahia – Transat 6.50 segue em direcção à baía da Biscaia, uma região marítima instável com a possibilidade de depressões atmosféricas que alteram o fluxo de vento obrigando os skippers solitários a uma navegação à bolina.
Já ao longo da costa de Portugal, os ventos alíseos favoráveis deverão embalar a frota, mas o mar pode apresentar-se agitado devido à variação brusca de profundidade – entre os 100 metros e os 4000 metros – na plataforma continental. A aproximação ao porto do Funchal deverá ser marcada a leste para evitar as calmarias nas proximidades da ilha da Madeira.

A segunda etapa do percurso é a mais longa rota desde o Funchal, passando ao largo das ilhas Canárias até alcançar os ventos alíseos na latitude de Cabo Verde. Este ponto da rota é crucial para o bom posicionamento da frota rumo aos Doldrums, a instável zona de convergência intertropical próximo do equador, onde os ventos do hemisfério norte se encontram com os ventos do hemisfério sul causando fortes turbulências atmosféricas ou calmarias absolutas.

Depois desta zona difícil, os navegadores encontrarão os ventos alíseos de sudeste que sopram no hemisfério sul. A rota até Salvador da Bahia tanto pode ser tranquila como pode ainda guardar surpresas fortes aos skippers, especialmente se surgir alguma frente fria a agitar os mares da costa brasileira.

O mini-iate 6.50

São duas as categorias de barcos a participar na regata Transat 6.50 – modelos fabricados em série e os protótipos, exemplares experimentais que têm evoluído desde a primeira edição do evento em 1976. Ambos os modelos porém têm o mesmo comprimento: 6,50 metros (daí o nome da classe Mini-Transat 6.50). O que mais os diferencia é o deslocamento (peso), que no caso dos barcos de série é de 1005 quilogramas e nos protótipos é de apenas 672, além, claro, dos materiais com que são fabricados, sendo os protótipos construídos em sanduíche de carbono e epoxy e massa PVC linear ou em forma de grãos e da quilha em caixa de carbono de alto módulo, bem como o leme e as bolinas de deriva.

O modelo mais popular produzido em série, o Pogo 2, é o tipo de barco que Francisco Lobato irá velejar – o Roff TMN, o mesmo que utilizou há dois anos, mas que foi melhorado e remodelado no estaleiro Delmar Conde, em Aveiro.

Com o casco construído em fibra de vidro e poliéster, a quilha em chumbo e um conjunto de velas que inclui a vela grande de 26 metros quadrados e mais cinco velas de proa –  estai, três velas balão (pequena, média e grande), gennaker e a vela code 5, o veleiro Roff TMN está optimizado para a travessia oceânica e já deu mostras da sua performance ao vencer uma das etapas da regata Transgascogne, entre Espanha e França, através da baía da Biscaia, em Agosto passado, e terminar o evento como vice-campeão.

Ficha técnica do veleiro Roff TMN

Comprimento – 6,50 metros
Largura – 2,99 metros
Calado – 1,60 metros
Deslocamento – 10005 kg
Vela grande – 26 metros quadrados
Estai – 18 metros quadrados
Vela balão – 70 metros quadrados

Um naufrágio e algumas alucinações

Em Julho de 2007, Francisco Lobato enfrentou o mais terrível acidente no mar – uma capotagem do veleiro. Enquanto navegava na Regata Transgascogne, entre Port Bourgenay, França, e Santander, Espanha, uma tempestade apanhou o velejador a vinte milhas de distância da costa. «O vento que já era forte – da ordem dos 30-35 nós (54-63 km/h) –  aumentou até os 60 nós (108 km/h) durante a noite e as ondas alcançaram os oito ou nove metros de altura, numa difícil navegação à bolina», lembra Lobato.

Ao aproximar-se da plataforma continental viu as ondas aumentarem ainda mais de tamanho. «O barco então virou e eu soltei-me do arnês de segurança mesmo a tempo, pois o barco demorou a desvirar, já com o mastro partido, e se eu tivesse levado mais tempo a soltar-me do arnês poderia ter ficado preso sob o casco do veleiro», contou o skipper solitário, lembrando que mais cinco outros navegadores também sofreram o mesmo acidente entre a frota de oitenta veleiros.

Recusando-se a abandonar o barco, pois perderia a hipótse de disputar a Transat 6.50 pela primeira vez, o skipper accionou a baliza Argus (um sistema de satélite privativo do evento) e pediu ajuda para rebocar o veleiro até Santander, enquanto tentava retirar a grande quantidade de água do interior do barco. Quase de seguida, foi a França buscar um mastro novo e veio a Portugal para realizar as reparações a bordo no estaleiro Delmar Conde, em Aveiro – e assim pôde disputar a Transat 6.50 em Setembro de 2007, classificando-se em 9.º lugar numa frota de 88 embarcações.

Foi durante a primeira etapa da Transat em 2007 que Francisco Lobato experimentou estranhas sensações a partir do quarto dia de viagem. Cansado já dos dias seguidos de manobras constantes, descurou os breves descansos de vinte minutos a cada duas horas e depois de um breve sono acordou com a impressão de que a sua irmã e a ajudante francesa estavam a bordo a esconder-se dele. «Cheguei a ouvir as suas vozes e até julguei que tinham caído ao mar e estava já a procurá-las com o binóculo», revelou Lobato ao chegar ao Funchal, na Madeira, primeira escala na rota até o Brasil.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt