O último bastião do absolutismo esclarecido

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A democracia, tal como é geralmente designada, não é perfeita, mas é, por enquanto, o melhor dos sistemas políticos. Uma das deficiências da democracia, conforme salientado pela teoria, é a possibilidade de se estabelecer uma tirania da maioria, sem mencionar o processo de tomada de decisão sob a influência da ilusão ou do engano. O absolutismo esclarecido, o qual trouxe grande prosperidade à Europa, particularmente no século XVIII, no campo da literatura, da arte e da ciência, baseado nas ideias do Iluminismo e do Racionalismo, trazidas pelos ventos da democracia, saiu do palco histórico. No entanto, teoricamente falando, existe um importante domínio da civilização que, como um marco histórico, dá testemunho do tempo e do sistema do qual é produto - a ciência. Os governantes do absolutismo esclarecido compreenderam que sem a liberdade da criatividade científica, a prosperidade dos seus países, a qual constituia o seu objectivo, não era simplesmente possível. O absolutismo esclarecido, sobretudo através do mecenato do monarca aos talentos científicos, deu asas à ciência, possibilitando que esta, desde então e até aos dias de hoje, tenha sobrevivido como uma espécie de ilha paradisíaca d"Os Lusiadas.

No que diz respeito à ciência jurídica, é importante estabelecer uma dicotomia prévia, ainda que grosseira. De um lado, temos um sistema de Direito europeu continental, baseado no Direito romano, o qual concebe o Direito como uma ciência, de forma a que a partir da norma jurídica abstracta contida nas leis ou códigos, recorrendo a certos procedimentos metodológicos de interpretação, isto é, a dedução, possa chegar-se a decisões com base científica para cada caso específico. Exemplificando, a interpretação teleológica revela a intenção do legislador aquando da adopção da norma jurídica de conteúdo específico, a qual os leigos (não advogados) simplesmente não conseguem compreender por não terem conhecimento dos conceitos jurídicos abstractos e da metodologia jurídica.

Por outro lado, o sistema anglo-saxónico de jurisprudência segue uma lógica oposta, considerando que uma regra pode ser extraída de uma decisão bem fundamentada para um caso específico, através da indução, a qual poderá ser posteriormente aplicada a todos os outros casos semelhantes; o que significa que a lei constitui mais uma competência específica, que não ciência, a qual assegura a estabilidade social. E quando se considera que os precedentes relevantes são contabilizados na casa das centenas de milhar, significa que é sempre possível escolher um precedente que "cubra" uma dada situação factual.

Iremos deter-nos, evidentemente, no primeiro sistema. Constata-se que no Direito romano não só os leigos, como também os advogados e até mesmo os juízes, são incapazes de resolver alguns casos em que se colocam numerosas e complexas questões jurídicas. Isso levou o Imperador Augusto a introduzir uma solução especial, ius publice respondendi, com base na qual um pequeno número de supremos advogados emitia opiniões jurídicas vinculativas (que, é claro, não se referiam a factos, mas à interpretação da lei). Resquícios dessa ferramenta subsistem até aos dias de hoje, quando reconhecidos Professores de Direito redigem um parecer jurídico que é então apresentado ao tribunal, não sendo, no entanto, vinculativo no Direito moderno. O mesmo ocorre na jurisprudência, quando o próprio tribunal, por não ter conhecimento de uma questão jurídica específica, convida um perito judicial, denominado amicus curiae, a apresentar a sua interpretação (não vinculativa). Na prática, devido à força dos argumentos apresentados, regra geral, os tribunais aceitam tais interpretações.

Porém, a política moderna e especialmente a geopolítica, grosso modo, assumiu tão imprudentemente o comando de todas as esferas da vida, que se transformou, a exemplo do era a Filosofia na Idade Média, em ancilla politicae, levando a que mesmo a ciência - incluindo o Direito -, se tornasse dela escrava. Como resultado, todas as autoridades foram destronadas e a consequência é visível: assiste-se a uma séria divisão na sociedade em torno de cada questão, mesmo quando esta é estritamente profissional. Inclusive na medicina, não existe mais uma autoridade na qual se possa verdadeiramente confiar! Daí o sério movimento anti-vacinação no mundo.

Na opinião de alguns académicos mundiais de excelência na área jurídica, estão a ser criados tribunais "internacionais" ilegítimos e até ilegais, mas os media oficiais, seguindo a política oficial do Estado, não questionam o dogma estabelecido. Mais, o órgão administrativo criado ilegal e ilegitimamente adopta uma norma (sic!), segundo a qual negar um determinado dogma é declarado uma infracção criminal!

Hesíodo, o primeiro eticista da civilização mundial, escreveu que "onde existe força, haverá lei", e Cícero afirmaria, indubitavelmente, hoje de novo, "O tempora, o mores"! Actualmente, é possível dirigir reclamações, mesmo que oriundas de não advogados, a um catedrático de Direito Constitucional, sobre questões directamente relacionadas com determinada lei! Goethe afirmava: "Não há nada tão assustador quanto a ignorância em acção".

A noção de que a maioria tem sempre direito a uma verdade inegável é uma noção vulgar e mecânica da democracia. A democracia, como a lei, não é resultado da matemática simples. O Talmude, que não é acidentalmente considerado como uma fonte de sabedoria - e a sabedoria não está relacionada com o tempo ou o espaço -, oferece-nos a seguinte alegoria: "Se se tem uma determinada opinião e outra pessoa tem a opinião contrária, pode estar-se certo ou pode estar-se errado. Se se tem uma determinada opinião e duas pessoas têm uma opinião contrária, talvez se tenha razão ou talvez a verdade esteja do lado delas. No entanto, se se tem uma determinada opinião e todos os outros têm a oposta, sem dúvida que se está certo, pois não é possível haver um consenso de tantos sábios no universo". Se assim não fosse, a visão geocêntrica ainda reinaria hoje, concebendo a Terra como uma placa plana no meio do universo e um cientista que afirmasse o contrário seria queimado na fogueira. É por isso que, depois de muitos séculos de luta e sacrifício, se conquistou o princípio da autonomia universitária e a ciência foi erguida ao mais alto pedestal.

Se, ou talvez melhor, quando se perceber que a ciência é o último bastião do absolutismo esclarecido e que as regras da máquina eleitoral democrática não se lhe devem aplicar, a própria democracia ascenderá ao mais alto nível da civilização.

Embaixador da Sérvia

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