O último barco de pesca artesanal que salva o verão do Pedrógão

Resta apenas um barco dedicado à arte xávega na Praia do Pedrógão, em Leiria. Num verão com demasiados dias frios ou nublados, a chegada das redes e a venda do peixe tornou-se uma atração cada vez maior. Sem apoio, os proprietários admitem encerrar a atividade.
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Agosto caminha para o fim enquanto os barcos ainda chegam à praia, na volta da pesca, na faina do mar. No litoral, há duas praias - Pedrógão e Vieira - que ainda vivem muito à conta da arte xávega, pois é ela que arrasta veraneantes, mesmo quando a praia não chama para banhos de sol.

André Cavalinho não nasceu no meio da pesca nem tão pouco na praia, mas foi ali, quando era pequeno, que lhe nasceu o fascínio pelos barcos. Era miúdo, e "delirava com aquele momento em que as redes chegavam à praia. Fazia parte daquele grupo de miúdos que queriam ajudar a puxar as cordas", que andavam ali à cata dos peixes caídos da rede. A imagem faz parte da infância de várias gerações na Praia do Pedrógão. Até que, já adulto, um barco se lhe atravessou no caminho. "O proprietário desta embarcação faleceu num acidente, ele e a família, na linha do comboio. Foi a filha que ficou com o barco. O marido e eu decidimos não deixar morrer a tradição", conta ao DN, ao final de uma manhã movimentada na praia. O grupo, que no total reúne entre a 15 a 20 homens, saiu para o mar pelas sete da manhã. Voltou, e demorou duas horas a escoar o pescado. O Flor da Praia Azul é o último barco dedicado à pesca artesanal na praia do Pedrógão."A outra embarcação desistiu, e esta vai pelo mesmo caminho", admite André, que não sabe se conseguirá manter a atividade no próximo verão.

É um hobby, "ninguém consegue viver disto", afirma. André dedica-se também ao catering, os companheiros têm igualmente outros empregos, porque "ninguém consegue viver só disto". Pescam ao longo de todo o ano, e no verão, conjugam férias para darem corpo à faina. De modo que quem chega à praia encontra invariavelmente o Flor da Praia Azul, atracado na areia, a partir ou a chegar.

Muitos são os que se lembram das redes a abarrotar. Era outro tempo, era outro o peixe que o mar lhes dava. Mas a André, 35 anos, não parece pouco. "Nós queremos sempre mais, nunca nos contentamos. Mas a mim parece-me que este ano até temos pescado bastante".

Enquanto a conversa decorre, a fila de clientes para o peixe daquela manhã vai crescendo. Na volta da pesca havia sardinha, carapau, cavala, "e hoje saíram salemas". Fernanda, uma emigrante na Suíça cujas raízes estão próximas de Monte Redondo, ali perto, veio com o marido à procura de robalo, mas não encontrou. Porém, leva para casa várias qualidades de peixe, que guardará num saco térmico até à hora de almoço. "Enquanto cá estamos, em agosto, venho sempre aqui comprar. Porque aqui sabemos sempre que o peixe é fresco", conta, apressada, pois que hoje o mar está bom, bandeira verde desfraldada, numa rara imagem das que teve nas férias.

O areal é grande, ali não é preciso contabilizar distâncias entre toalhas e chapéus. Ao fundo, tratores e caixas de peixe destacam-se. Armando Botas é o mais velho do grupo. Já passou os 80 anos, já se aposentou, mas nem um acidente recente que lhe deixa à vista uma cicatriz na perna esquerda o demove das responsabilidades: é ele quem remenda as redes, quem as prepara, para outros lançarem ao mar. Noutro tempo, era ele que o fazia. "Sabe o barco que está lá em cima, na rotunda, a dar as boas-vindas à praia? Era meu", conta.

Há uns meses, rasgou uma perna num dos utensílios da pesca, ali no areal. Nada que o fizesse ficar em casa, na vizinha praia da Vieira - onde a arte xávega se mantém muito viva. Mas é no mar do Pedrógão que tem a experiência e a história de vida. Natural de Lisboa, começou a pescar muito longe dali, no rio Sado. Mas leva mais de metade da sua existência naquelas areias, desde o tempo em que "tudo era diferente, e o trabalho era muito mais pesado. Porque as redes eram puxadas à mão, e agora fazemos isto com a ajuda de um trator", conta ao DN. Não há muito tempo, já ali andou com ele um dos netos mais velhos, mas "isto não é vida para a malta nova", considera Armando.

As alterações climáticas têm trazido dias frios em pleno agosto, nevoeiro e vento, muito vento. De modo que os dias de sol, calor e mar calmo - como aconteceu na semana passada - são quase de festa para os bares da praia e para os restaurantes, onde ainda se come o melhor peixe grelhado.

Os dias do Pedrógão e de faina estão registados em vídeo no youtube, pela jornalista Marta Botas, nascida e criada na praia, onde acabou por regressar. Tem intenção de escrever um livro a contar a história da terra e dos pescadores. "Eu cresci a ouvir dizer que a pesca artesanal ia acabar, mas a verdade é que ela persiste", sublinha, ela que é neta e filha de pescadores. Como acontece com a maior parte de quem ali mora. No inverno, é das poucas que vai registando em fotografia e vídeo os dias da praia. Este ano, o Flor da Praia Azul foi para o mar a primeira vez em março, e desde a primavera que leva pessoas à praia. "A partir do dia 15 de setembro morre tudo outra vez. Isto é o que mantém a nossa praia viva", afirma André Cavalinho.

A pandemia afastou das redes os voluntários para ajudar a puxar as redes. Mas não conseguiu acabar com uma das tradições mais antigas das praias portuguesas, entre a Costa Nova e a Costa de Prata, desde a Vagueira à Vieira.

"Financeiramente não precisamos de apoio nenhum. O que precisamos é de outro tipo de apoio, infraestruturas para guardar o nosso material de inverno. Temos um desgaste muito grande nas máquinas, nas carrinhas", revela André Cavalinho. Ao lado, afixada no paredão, uma placa anuncia um investimento de 290.958.69 euros, em que mais de 247 mil são financiados pela União Europeia, no âmbito do Programa Operacional Mar 2020. "Acha que está aqui investido alguma coisa que se compare com isso?", questiona André.

Na praia do Pedrógão a venda do peixe fazia-se no areal, mas desde o ano passado o grupo conseguiu autorização junto da APA (Agência Portuguesa do Ambiente) para montar uma tenda e uma banca junto ao paredão, mas mais tarde recuou. Foi a Câmara de Leiria que acabou por montar o espaço onde agora estão, provisoriamente. "Nós gostamos muito disto, e andamos aqui para que isto não acabe. Mas é difícil. Não sei se voltamos a fazê-lo para o ano. A verdade é que isto também é um vício que temos. Se o mar estiver mansinho, o barco tem que ir para o mar".

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