O último aventureiro português

Ganhou o gosto pelo todo-o-terreno no jipe que o levava aos cinco anos  para a Escola Ave-Maria. Foi piloto, preparador de automóveis e criou as provas automobilísticas mais importantes do País. Era o português com mais carimbos no passaporte.
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Costumava dizer que ganhara o gosto pelo todo-o-terreno com apenas cinco anos nos trajectos entre a sua casa e a escola no jipe do colégio Ave-Maria. Os solavancos no empedrado das ruas de Alcântara davam-lhe um sabor diário a aventura. Com esse espírito manteve-se até ao fim da vida e nem a doença o fez demover.

Apesar de o diagnóstico de cancro no pulmão ser avassalador e pouco esperançoso, José Megre manteve-se entusiasta, curioso e ávido por mais uma aventura. Nos últimos meses de vida, circunscrito a uma cadeira, lia e analisava mapas e imaginava viajar - com um médico e oxigénio atrelados - a alguns estados do México que tinham ficado por conhecer.

Os amigos não lhe poupam os elogios. "Tinha imenso sentido de humor, era uma delícia estar ao pé dele. Tinha sempre imensas histórias para contar", disse ao DN Teresa Cupertino de Miranda, que foi namorada de José Megre durante oito anos. "Era um herói", garante Carlos Paço d'Arcos.

José Megre nasceu a 26 de Março de 1942 em Lisboa. Por influência do seu pai começou a guiar aos 13 anos.

Estudou engenharia mecânica automóvel na British Motor Corporation, em Inglaterra, durante três anos, juntamente com um grupo de amigos: Leite Faria, Carlos Paço d'Arcos e Luís Pombal. Boémios e bem-dispostos, os portugueses eram meninos de boas famílias mas não tinham dinheiro a saltar dos bolsos, por isso mesmo cedo perceberam que se queriam farras e copos teriam de trabalhar. Serviram à mesa numa tasca em Sloane Square, o Chelsea Kitchen, e tudo o que ganhavam em gorjetas estoiravam na boa vida.

De regresso a Portugal, José Megre casou-se com Paulina Macambira, hospedeira da TAP, de quem teve dois filhos, e foi trabalhar no Entreposto onde durante 30 anos ocupou vários cargos: director técnico, administrador e consultor do grupo. Também passou por Angola como alferes comando da 22.ª companhia, uma das mais aguerridas na antiga colónia.

Cumpriu com os 24 meses de serviço obrigatório e despediu-se de África com saudade. Os amigos garantem que a guerra não o deixou "cacimbado", termo usado pelos soldados para apelidar o trauma de guerra ou stress pós-traumático.

A paixão por expedições começou em África na década de 60. Carlos Paço d'Arcos, escritor e amigo de infância de Megre, contou ao DN detalhes dessa primeira aventura angolana: "Era meia-noite e estávamos com um grupo grande a beber copos no Calhambeque, em Luanda. Então o Zé disse: e se fossemos andar de jipe para o deserto de Môçamedes? Então combinámos encontrarmo-nos todos às sete horas da manhã em frente ao Hotel Continental. Só aparecemos nós os dois. Eu de mala Samsonite e camisola Lacoste. Ele todo sujo e com metralhadoras G3." Esperaram até às 07.30 mas mais ninguém apareceu. A 130 km por hora, empoleirados num Mini Moke, carregado de peças de outro carro, atravessaram Angola inteira durante mais de um mês de viagem.

" Nunca o vi com medo. Mesmo em situações complicadas, impunha respeito. Talvez tivesse a ver com a sua formação como comando", diz Teresa Cupertino de Miranda. Numa viagem à Nigéria em que estiveram dois dias em cativeiro, José Megre abordou os soldados nigerianos sem receio: "Se querem, matem-nos a todos, senão soltem-nos", disse em tom ríspido. Incrédulos, os militares, libertaram-nos mesmo.

A viajar desde a adolescência, José Megre visitou 193 países, quase a totalidade dos Estados soberanos do mundo, faltando-lhe apenas o Iraque, onde tentou entrar através do Koweit em direcção a Bassorá. Nos meses que antecederam a sua morte, tinha engendrado nova investida no território iraquiano, queria entrar por Norte através do Curdistão Iraquiano. Uma última viagem que nunca chegou a fazer.

Conseguiu, no entanto, terminar o livro que preparou com enorme ânsia nos últimos meses. Ainda este ano será publicado o registo fotográfico das suas melhores viagens, acompanhado de textos da sua autoria.

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