O Último Árbitro
Será um lugar-comum declarar que os escritores, e também as crianças, necessitam de um modelo parental que lhes imponha o código, lhes atribua o prémio, e lhes sentencie o castigo, sob pena de se transformarem em autocráticos monstros, exploradores do próximo, ou em adultos inúteis, a coçar os costados nas esquinas. Por anos e anos João Gaspar Simões encarnaria o grande irmão, aterrorizando e protegendo, verberando e excluindo, os letrados da nossa terra, e desempenhando uma missão que o situava entre o mestre-escola e o juiz. A tenacidade, e inclusive a verrina, que injectava na sua canseira de árbitro das letras lusas, não tornariam a ser igualadas.
Biógrafo de talento, e responsável por ensaios fundamentais sobre as vidas e obras de Eça de Queirós e Fernando Pessoa, Gaspar Simões abordaria entretanto com indiscutível êxito o romance, legando-nos pelo menos um título marcante, Internato, o qual interessará sem dúvida ao crescente grupo de académicos, debruçado hoje sobre os denominados "estudos queer". Mas era pela crítica que espraiava a sua faina de plumitivo, publicando recensões todas as semanas no mesmo jornal em que segue esta crónica. E contar-me-ia Jorge de Sena que, tendo alguém chamado a atenção de Simões para a vantagem que retiraria de se dedicar com maior afinco à sua vertente ficcional, responderia ele, não sem acrimónia, "Isso era o que "eles" queriam!".
O colectivo "eles" configurava na circunstância os nossos autores, de géneros variados, que viviam expressa, ou tacitamente, suspensos do veredicto do implacável João Gaspar Simões, exarado nas suas colunas do Diário de Notícias. Lembro-me de ver o romancista Augusto Abelaira apreensivo por não haver saído ainda a avaliação de um livro que acabara de dar à estampa, quando Gaspar Simões apreciara já outros, surgidos posteriormente. E as alcunhas que lhe pespegavam aqueles que não lhe mereciam qualquer apreço, ou que se mancomunavam com os camaradas na oposição à bête noire que Simões representava, exprimiam nesses termos medo idêntico ao dos alunos petrificados diante do terrífico director do colégio. Centrados na vastidão da zona mamilar do nosso homem, os epítetos soezes com que o insultavam converter--se-iam em palavras-passe, unindo os confrades numa presumível antipatia institucional.
Diga-se porém que não se encolhia o crítico face às qualificações que aplicava aos que lhe caíam sob o olhar, e aos frutos resultantes do engenho que lhes assistia. Capaz de caracterizar Agustina Bessa-Luís como "um Camilo de saias", locução em que tanto se detectaria o sinal do epigonismo como a excelência da escrita, João Gaspar Simões despachava as primícias de um vanguardista da década de sessenta, e pouco antes galardoado, etiquetando-as laconicamente de "uma mayonnaise". E eu seria abrangido pela sua rede, e logo atirado ao mar largo como um refugo da pesca, mediante a classificação do meu trabalho como passageiro fenómeno de moda, no qual não valeria a pena reparar.
Eminências assim não deixam todavia de possuir um coração atreito ao movimento das paixões, e não raro sem conseguirem escondê-las. Garantir-me-iam dois amigos terem visto Gaspar Simões banhado em lágrimas, aquando da travessia de uma agreste paisagem sentimental, e por ocasião do velório de José Régio, seu muito querido condiscípulo dos tempos de Coimbra, e da aventura da Presença. Alvo da austeridade do fiel companheiro, até Régio se queixaria amiúde das escolhas e desescolhas de Simões, magoado pela falta de apreço com que este o destratava, conforme ao que provam umas quantas cartas inéditas, e de minha propriedade, do poeta de As Encruzilhadas de Deus.
Eu avistá-lo-ia por fim, a almoçar com um cavalheiro na esplanada do Grémio Literário, e afigurava-se-me João Gaspar Simões um senhor cordato, e porventura melancólico. Por um desaire amoroso tirara o desforço amplamente divulgado, e que o seu pundonor reputara de indispensável. E nessa época, comentavam os mais chegados a ele, cumpria um regime de manutenção que lhe reduzia o jantar a uma simples sopa, precedida pelo whisky de que não prescindia.
Folheando agora um dos volumes das suas críticas, editados pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, tropeço neste pedaço que talvez o sintetize, "Nós não podemos atraiçoar uma tradição remotíssima de poesia "significante" (...), para nos voltarmos para uma recentíssima poesia "insignificante" (...), ou seja, sem significado contido no próprio agente da comunicação."