O Turismo, a Hotelaria e a Inteligência Artificial (III)_ Personalização e privacidade

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"Quando entrar no seu hotel, a equipa irá recebê-lo tratando-o pelo nome, conhecerá as suas preferências de viagem e antecipará as suas necessidades. Quase todos os aspectos da sua estadia serão personalizados de acordo com os seus gostos, e você pode reconfigurar o seu quarto a qualquer momento, adaptando-o ao trabalho, exercício, socialização ou sono. Para todas as principais marcas hoteleiras, o bem-estar dos hóspedes e funcionários - e a saúde do planeta - serão as principais prioridades"

(tradução livre) - McKinsey & Company - "The future of Hotels: customized experience, sustainable practises"

A minha última crónica sobre o tema tinha claramente um sentido optimista: dar nota de quanto a IA teria um impacto positivo na experiência dos clientes e no bem-estar dos trabalhadores.

Maravilhoso Mundo Novo, este chamado novo normal da indústria hoteleira? Sem dúvida, mas, como tudo, qual o preço a pagar para que se possa usufruir deste tratamento tão personalizado? E que riscos comporta? Que implicações éticas deverão ser ponderadas no balanço entre personalização do serviço e protecção da privacidade?

Vamos lá ver se nos entendemos. A IA é uma ferramenta que trabalha com dados. Dados esses que vêm, no caso dos hotéis, quer directamente do cliente, quer indirectamente de diversas fontes de dados que vamos semeando na nossa jornada no digital (mais ainda quando hoje ninguém escolhe uma viagem ou hotel sem primeiro "navegar" muito). E dados são informação, sobre preferências, hábitos, comportamentos, actividades, interacções, alergias, intolerâncias alimentares, doenças etc, etc, etc.

Portanto, a primeira consideração de ordem ética quanto ao uso da IA na hotelaria respeita à privacidade: seguramente apreciamos a personalização no serviço hoteleiro, mas estaremos conscientes de quanto estamos a abdicar da nossa privacidade para esse fim? Como assegurar o equilíbrio? O que estará nas minhas mãos e nas mãos do hotel/empresa que colige os meus dados garantir?

Mais 2 questões neste plano ético: (1) a "discriminação algorítmica": algoritmos de IA podem inadvertidamente perpetuar preconceitos e discriminação, afetando determinados grupos e indivíduos; (2) responsabilidade e transparência: como determinar quem é responsável por falhas da IA e garantir transparência nas "decisões" algorítmicas?

E no plano da segurança, os desafios são igualmente exigentes, começando na cibersegurança. A vulnerabilidade de sistemas de IA a ataques cibernéticos permite a manipulação de informações e a disseminação de informações falsas ou erróneas; a alteração de informações ou a automação de fraudes e golpes, como reservas fictícias ou promoções enganosas, representando obviamente um perigo e ameaça para a segurança de turistas e empresas e, no fundo, comprometendo a confiança no Turismo.

E quanto a consequências no emprego? Falei na última crónica, relembro, nas vantagens que a automatização de tarefas mecânicas e repetitivas pode trazer para o emprego no Turismo. Mas é evidente - tal como noutras áreas e sectores - que essa automatização terá impacto e potencial desemprego. Todavia, não tanto nos trabalhadores com menores qualificações (ex. limpezas), nem sequer nos muito especializados em tratamentos pessoais ou com qualificações específicas (ex. massagistas; professores de yoga ou mindfulness; chefs; nutricionistas; animadores em kids clubs), mas noutros mais automaticamente substituíveis. E, tudo indica, as novas gerações querem ser muito mais flexíveis relativamente às funções que exercem nos hotéis e aos horários: concierge, mas também bartender; fazer camas, mas também estar na cozinha.... Querem aprender e exercer novos e diferentes skills ao longo da vida, não ficar amarrados a um horário e função, ser multi-task. E ser remunerados em razão dessas múltiplas competências. O que, convenhamos, é muito mais interessante! Ora, onde é que isso deixa a estratificação de profissões, de horários e de salários, tão querida aos nossos sindicatos (tema escaldante e palpitante, com pano para mangas)? E o ensino? E o treino para possibilitar a integração de várias carreiras?

Estes são apenas alguns dos tópicos éticos e de segurança, bem como os impactos no emprego, relacionados com a IA no Turismo. Cada um deles merece uma consideração cuidadosa e medidas para minimizar riscos e maximizar benefícios.

Um à parte final: no estado actual da arte, creio que a dependência da IA para a tomada de decisões pode não só levar o "humano" a tomar decisões erradas, assumindo acriticamente que a IA está correcta, como pode mesmo diminuir a autonomia humana e a autenticidade das experiências. Ainda há muito a aprender.

VP executiva da AHP - Associação da Hotelaria de Portugal

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