O trilema do condomínio

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Distraídos da outra guerra, esta não é um problema, são três - e uma tragédia. É dos livros que um trilema ocorre quando três elementos não podem juntar-se e coexistir ao mesmo tempo. Israel vive num destes trilemas há dezenas de anos. E as repetidas guerras naquela parte do mundo, onde se pisa Terra Santa, são o resultado sangrento da incapacidade de resolver os três lados da questão. Porque, apesar da aparente complexidade do conflito entre israelitas e palestinianos, o pano de fundo é bem mais simples: Israel não pode ser, ao mesmo tempo, um Estado judeu, ter um caráter democrático, e manter o controlo sobre todos os territórios e populações de palestinianos que agora domina. A segregação étnica e religiosa e os surtos recorrentes de violência são o resultado direto da eternização desse trilema.

Dos três elementos que os sucessivos líderes israelitas quiseram compatibilizar até hoje, apenas dois podem ser alcançados ao mesmo tempo. Se Israel quiser ser um Estado judeu e democrático, terá de pôr fim à ocupação ilegal de terras que não são suas, à luz do Direito Internacional. Se quiser ser democrático e controlar todos os territórios, terá de deixar de ser um Estado judeu para ser binacional e igualitário. Se decidir permanecer um Estado judeu, submetendo as populações e anexando os territórios da Cisjordânia e de Gaza, então não será, de todo, um Estado democrático. E já não o é para uma parte importante dos seus cidadãos, e muito menos para as populações palestinianas nos territórios ocupados. Cada novo surto de violência em grande escala, como aquela a que agora assistimos a partir do sofá, é um lembrete de que o conflito está para durar. É aterrador o que aconteceu com o ataque das milícias do Hamas a cidades israelitas, e é aterradora a devastação e morte provocadas pela retaliação nas sobrepovoadas áreas urbanas de Gaza. O linchamento de civis, em nome das diferenças étnicas e religiosas, é a definição mais desprezível de ódio e crueldade. Olho por olho, a vingança caminha sobre brasas. Décadas de matéria inflamável acumulada prenunciam um incêndio sem precedentes, que pode alastrar e que vai ter inevitáveis consequências na geopolítica regional, Europa incluída.

Os noticiários das últimas horas dão conta de um cessar-fogo para abrir corredores humanitários numa Gaza cercada e com centenas de milhares de palestinianos em fuga. É um novo êxodo. Mas toda a vitória incuba e germina uma derrota, especialmente quando o vencedor a quer absoluta. Só a aniquilação garante o desaparecimento dos vencidos, depois de arrasar as suas cidades e semeá-las com sal, como Roma fez a Cartago. Mas não deixa de ser estranho e pungente que uma pulsão (de ambos os lados) que busca a liquidação do inimigo, da sua causa, das suas ideias e da sua memória, se entranhe entre os líderes de um povo que esteve na mira do extermínio. Tal é a deriva dos dirigentes em Telavive, em particular nestes penosos últimos anos com Governos cada vez mais autocráticos e escorados à Direita, sob a liderança de Benjamin Netanyahu.

Perante o impasse de décadas para alcançar a paz entre israelitas e palestinianos por via dos dois Estados, como preconizam sucessivas resoluções da ONU, são cada vez mais as vozes que defendem uma abordagem do conflito centrada nos direitos e na segurança humanos. Trata-se de ultrapassar os moribundos "processos de paz" e concentrar-se na proteção dos direitos e na responsabilização quando estes são violados, como deveria acontecer em qualquer Estado digno de chamar-se democrático. O Hamas é uma organização terrorista e como tal deve ser tratada. Ponto. Mas se Israel persistir em manter a supremacia judaica entre o Mediterrâneo e a Jordânia através de um regime de segregação e ocupação, essa escolha tem um nome: é "apartheid".

Jornalista

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