O treinador ambicioso que bate à porta antes de entrar no balneário

Francisco Neto cresceu a ver o pai treinar e seguiu-lhe o exemplo. Orienta a seleção nacional feminina e vai estar no Europeu 2017
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Francisco tinha 6 anos quando começou a acompanhar os treinos e as palestras do pai, Carlos Neto, no Mortágua FC, o clube da terra que o viu nascer há 35 anos. "Vivia atrás do campo. Como não tinha idade para jogar, ia apanhando umas bolas durante os treinos do meu pai", contou ao DN o selecionador, explicando assim o início da paixão pelo futebol , que o levaria à seleção nacional feminina, que na semana passada festejou o apuramento histórico para o Euro 2017.

Se fosse preciso falava de futebol desde o pequeno-almoço até ao jantar. E se falhava uma refeição era fácil encontrá-lo: "A jogar" na rua com o irmão Luís ou com os amigos, no campo do Mortágua FC, o primeiro clube. Depois os pais mudaram para Viseu e ele foi para o CF Os Repesenses. Nessa altura, confessa, "achava que era um líder em campo".

Miná, alcunha de Francisco no bairro da Gandarada (Mortágua), adorava ver futebol na televisão: "Gostava de ler o jogo, tentar entrar na cabeça dos treinadores, adivinhar as substituições e tentar perceber a causa-efeito." Da análise de sofá para o campo de treino foi um caminho normal para alguém que seguiu o curso de Educação Física. Até que aos 20 anos foi convidado a treinar a seleção distrital de sub-13 da Associação de Futebol de Viseu. E assim passou da teoria à prática.

Em 2007 foi promovido a coordenador técnico, responsável por todas as seleções distritais. E foi esse cargo que o levou à seleção nacional pela primeira vez: "Os coordenadores das associações regionais eram convidados pela federação a fazer um estágio com uma equipa e o de Viseu fazia sempre o Algarve Cup (torneio de futebol feminino). Eu dei seguimento a essa tradição, afinal já tinha treinado a seleção regional feminina de sub--17." Foi então integrado na equipa de Mónica Jorge, como treinador de guarda-redes. Ela "gostou" do trabalho e pediu-lhe para ficar. E ele ficou de 2008 a 2010.

Mais tarde o caminho levá-lo-ia até Goa, na Índia (treinou a seleção sub-23), por intermédio de um professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Francisco aceitou o desafio e só saiu de lá com o ouro nos Jogos da Lusofonia 2013. E quando se preparava para voltar ao cargo de diretor técnico, em Viseu, recebeu uma chamada de Mónica Jorge, vice-presidente da federação, a convidá-lo para assumir a seleção feminina portuguesa. O que aconteceu em fevereiro de 2014.

O "prof" que não gosta de perder
Para Francisco não é complicado trabalhar com mulheres, porque "a partir do momento em que se concentram são jogadoras e não mulheres, focadas no objetivo, o que torna a liderança mais facilitada". E as diferenças entre treinar homens e mulheres estão no nível competitivo: "Eles começam com 7, 8, 9 anos, no feminino isso não existia, iam mais tarde, e o nível competitivo em que estavam inseridas era mais baixo do que o dos rapazes. Por isso quando chegam à seleção carecem dessa experiência."

E as palestras? São no balneário? "Eu não deixo de ser eu no balneário. O único constrangimento que eu tenho ao treinar uma seleção feminina é bater à porta antes de entrar. Espero que alguém dê indicação e se for preciso espero uns segundinhos... A minha adjunta fazia o mesmo quando treinava equipas masculinas", conta.

E elas, "as miúdas", como se refere às atletas, estão agora entre as 16 melhores da Europa e tratam-no por "prof". "Ele é uma pessoa que procura sempre o bem-estar do grupo, é sincero e amigo", confidencia Ana Borges, adiantando ainda que, se algo corre menos bem, "ele não dá na cabeça, ajuda a melhorar". A jogadora do Chelsea lembra que a presença no Europeu se deve também ao trabalho feito antes, mas houve melhorias desde a chegada de Francisco: "Hoje temos uma identidade que é jogar "à Portugal", um futebol apoiado e técnico, que as pessoas gostam de ver. Isso foi algo que ele e a equipa técnica conseguiram."

Como chefe de equipa gosta de delegar funções, nomeadamente em Rafaela e Marisa Gomes. "O Francisco é uma pessoa que gosta de trabalhar. É ambicioso, positivo e tem uma forma de estar muito cordial, conseguindo agregar o melhor das pessoas que estão à volta", elogiou a adjunta de Francisco Neto, que o treinador já protegeu de alguns episódios machistas.

"Não gosta de perder e gosta de incutir esse espírito às jogadoras. Diz sempre que é preciso saber perder, e quando o adversário é melhor, há que saber dar-lhe os parabéns", contou a adjunta, dando como exemplo o primeiro jogo da qualificação (derrota com a República Checa), em que o selecionador teve "uma reação de frustração", que a surpreendeu por estar "mais habituada ao otimismo dele".

O segundo melhor no curso UEFA
Em 2013 destacou-se no Curso de Treinadores de IV Nível da UEFA. Francisco Neto teve a segunda melhor nota (16,6), apenas superado por Filipe Almeida, da equipa técnica de Vítor Pereira, e à frente de Nuno Espírito Santo, Sérgio Conceição ou Paulo Fonseca. O atual treinador do Shakhtar lembra-se bem dele, "uma pessoa muito inteligente, ponderada, serena e principalmente muito humilde".
Têm mantido o contacto e Fonseca adivinha-lhe um futuro brilhante: "O Francisco é muito competente e vejo nele sempre uma enorme vontade de absorver e de aprender. E como pessoa inteligente que é pode ambicionar uma carreira brilhante como treinador."

E sem bloqueios ou preconceitos por treinar mulheres. "Não imagino o que seja treinar no futebol feminino, mas não é tão fácil quanto parece. Ele tem feito uma grande ginástica ao nível do recrutamento. Isso também o faz crescer. E num contexto mais favorável poderá realizar um trabalho ainda melhor", garante Paulo Fonseca.

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