O tororó de Anitta

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Anitta, rainha do funk carioca, tatuou love em redor do ânus. Aparentemente irrelevante, esta informação pode levar à abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional do Brasil.

Tudo começou quando Zé Neto, metade da dupla sertaneja Zé Neto & Cristiano, resolveu aquecer o seu público de caipiras, a versão brasileira dos rednecks americanos, num concerto, a 12 de maio, em Sorriso, Mato Grosso do Sul: "Nós não dependemos da Lei Rouanet nem fazemos tatuagem no tóba", gritou.

Tóba é calão local para ânus e Rouanet é uma lei, ainda dos tempos do governo Collor, que prevê apoio do estado à criação artística. Como os beneficiados, os artistas, são na sua maioria anti-Bolsonaro, a claque do presidente faz do ataque à lei a sua segunda maior obsessão.

Porque a primeira é o local onde Anitta tatuou love: quando foi acusado de ter gasto cerca de três milhões de euros na aquisição de leite condensado, Bolsonaro mandou a imprensa enfiar o dinheiro no rabo; no auge da pandemia, o filho Eduardo sugeriu aos brasileiros meterem as máscaras no c*; Olavo de Carvalho, num bate-boca com Caetano Veloso, prometeu "chupar o c*" do músico caso Bolsonaro fosse envolvido nalgum caso de corrupção. Para quem não sabe, Olavo, um escritor de extrema-direita falecido em janeiro, foi considerado "guru" do presidente. Mas ele não gostava do epíteto: "guru é o c* da sua mãe", reagiu.

Zé Neto, entretanto, não sabia o buraco onde se estava a enfiar: o até então meio anónimo sertanejo foi atropelado nas redes sociais pelos zilhões de fãs de Anitta, cantora que chegou a liderar o Spotify global em março. Ao melhor jeito bolsonarista, o sertanejo meteu o microfone entre as pernas e declarou-se arrependido.

Em paralelo, a imprensa descobriu que no tal concerto, Zé Neto & Cristiano, críticos furiosos da Lei Rouanet, receberam 80 mil euros da prefeitura de Sorriso - públicos, portanto.

O Ministério Público, por sua vez, vai investigar o cachê de Nivaldo Lima, cantor conhecido como Gusttavo Lima e ícone do sub-género "sertanejo universitário", num concerto em São Luiz, cidade de 8,2 mil habitantes no Roraima, no valor de 160 mil euros. A verba estaria destinada no orçamento municipal para educação e saúde. Outros shows de outros sertanejos noutros pontos do país estão também a ser investigados, num efeito dominó de consequências imprevisíveis.

A prefeitura de Conceição do Mato de Dentro, cidade de 18 mil habitantes em Minas Gerais, antecipou-se e já cancelou concertos de Lima e da dupla Bruno & Marrone no valor 240 mil euros e 100 mil euros, respetivamente. Por contrato, Lima teria direito a cinco veículos, dois deles blindados, e a prefeitura (ou seja, o povo) ainda teria de arcar com a hospedagem da equipa "no melhor hotel da região", além de 800 euros diários para a alimentação de técnicos e banda.

Parlamentares estão agora decididos a instalar a tal CPI para perceber os negócios daqueles prefeitos e dos sertanejos, já chamados de "milícia artística de Bolsonaro".

Lima, como bom bolsonarista, chorou no Instagram. "Sou perseguido", disse o dono de um património de 55 milhões de euros, incluindo jatos, carros de luxo, iates, mansões e fazendas.

Já Anitta, cujo património é ainda maior, resumiu a situação com muito love no coração: "Meu Deus, eu só estava fazendo uma tatuagem no tororó [que, como tóba, também significa ânus no calão local]".

Jornalista, correspondente em São Paulo

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