O Imamat Ismaili, liderado pelo Aga Khan, comprou agora o Palacete Leitão, em Lisboa. Que relação têm os ismaelitas com Portugal? Há uma proximidade que foi construída ainda durante a época colonial, através da Índia, mas fundamentalmente de Moçambique. Encontramos muitos ismaelitas no estado português da Índia, mas à medida que o século XX avança, e que a Índia tem a sua independência, muitas famílias ismaelitas vão para Moçambique e daí virão para Portugal, após o 25 de Abril. É esse o centro da relação contemporânea com Portugal..Por que razão Aga Khan escolheu Portugal para implantar a sede mundial dos ismaelitas? Presumo que por um conjunto de vários fatores. O primeiro será uma questão geopolítica, que tem muito a ver, no que se refere a plataforma giratória, com aquilo que os ismaelitas são também em termos de integração no espaço da Europa, África e Ásia e de Portugal, através da lusofonia, da sua herança, há já vários séculos funcionar também como plataforma de circulação com África, com Moçambique e com a Índia. Outro fator, cada vez mais importante, é que hoje vivemos em Portugal um clima de liberdade religiosa muito significativo que faz que Portugal seja um estímulo, querido não só pelos ismaelitas mas por muitas outras comunidades religiosas..Quem são verdadeiramente os ismaelitas e de onde vêm? Em termos religiosos, são muçulmanos. Fazendo um paralelo com o mundo cristão, quer os católicos, quer os protestantes, quer os ortodoxos são cristãos. No mundo muçulmano, tanto os xiitas como os sunitas são todos muçulmanos. Na religião islâmica, os ismaelitas são uma corrente dentro do xiismo que já em si é uma corrente dentro do islão. O mundo islâmico divide-se em duas grandes correntes, aquela que é a maioritária, os sunitas, e a minoritária, os xiitas. Dentro dos xiitas, há uma corrente mais pequena, que são os ismaelitas, que ao longo dos séculos se foram desenvolvendo fundamentalmente no Paquistão, no Afeganistão e no Norte da Índia. Têm uma ligação ao Egito, mas em termos populacionais, o grande núcleo é nessas estepes centrais da Ásia..Citaçãocitacao"Aga Khan é um príncipe sem reino ou um príncipe cujo reino são os súbditos.".São uma corrente muito antiga? Começaram a existir pouco tempo depois de existência do próprio Profeta, nos séculos VIII, IX, não são um movimento recente. A atual formulação do Aga Khan enquanto um líder - que tem o direito de usar o título de sua alteza como se fosse um monarca - é mais recente, é do século XIX, da época da rainha Vitória. O mais peculiar, e que se cruza com esta questão de tornar Lisboa a sua capital, é que, sendo o Aga Khan o monarca, ele não tem território, não há um país dos ismaelitas..Mas é sempre recebido como chefe de Estado. Exatamente. Isso é uma questão protocolar que foi definida na época da rainha Vitória, com o tratamento de Sua Alteza. Mas, de facto, os ismaelitas não correspondem a um território, a um país. Pode-se dizer que é um príncipe sem reino ou um príncipe cujo reino são os súbditos. Pode mudar a capital porque não há um país que seja o país dos ismaelitas..Aga Khan é visto como um monarca, herdeiro do Profeta, recebido como chefe de Estado... Tudo isso traduz a sua importância. Por várias razões. Pela forma como se relaciona em termos religiosos - é uma comunidade religiosa muito coesa, mas até em termos simbólicos. Esta figura de ser um monarca sem reino permite todo um trabalho de consciencialização, de valorização da imagem que o Ocidente tem do que é o islão. Este monarca, este Aga Khan, tem um trabalho gigantesco e construtor de uma rede de ONG - a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, que apoia instituições, desde universitárias a hospitalares pelo mundo fora, nomeadamente na Ásia Central, mas não só. Por exemplo, tem constituído um Museu de Arte Islâmica excecional que já fez parte do espólio em exposição na Gulbenkian há uns anos e que é no Canadá. E tem um grupo de prémios relacionados com a cultura, nomeadamente com arquitetura. No fundo, quase me arriscava a dizer, é uma face cosmopolita do islão..Os ismaelitas são muçulmanos progressistas? É complicado aplicar certas palavras ao universo religioso. Percebo a tentação. Mesmo em relação ao cristianismo temos menos pudor e usamos o vocabulário com mais facilidade. O Aga Khan é o imã do tempo, é a pessoa autorizada - porque é o descendente do Profeta - a fazer a hermenêutica do texto sagrado a qualquer momento. E isto leva-nos para situações que podem ser, num primeiro olhar, contraditórias. Isto é, ao passo que em certas correntes religiosas, sejam cristãs ou islâmicas, se faz uma leitura literal do texto religioso, o Aga Khan pode reinterpretar o texto de acordo com o tempo. Contudo, isso implica uma atualização do texto sagrado, mas também implica outra coisa, que só ele é que o pode fazer. Portanto, por um lado é progressista, por outro não é..O avô de Aga Khan disse que se tivesse um filho e uma filha, e se tivesse de escolher qual deles educaria, escolheria a rapariga. Isso mostra alguma diferença de tratamento dos ismaelitas em relação às mulheres? Essa é uma das frases mais emblemáticas e mais conhecidas, e é uma frase significativa que a nós ocidentais nos choca pelo que de inesperado tem. Contudo, as culturas semitas, falemos do islão ou do judaísmo, valorizam muito a educação das meninas porque são elas que no ambiente do lar irão educar os futuras gerações. Essa frase que é atribuída ao avô do atual Aga Khan é uma frase que se encontra facilmente na cultura judaica. Quem vai educar os filhos ou as filhas de um casal é a mulher, é quem está maioritariamente em casa, é ela que em primeiro lugar deve receber instrução para o fazer e para gerir a própria casa. Perante a ideia que temos hoje do islão sunita do Médio Oriente, em que representamos a mulher com a burca, de facto a frase parece-nos verdadeiramente espantosa. Efetivamente, as culturas semitas, o judaísmo, mas também o islão, defendem o ensino doméstico para a mulher. Não é tão novo quanto isso, é novo quanto à perceção que temos do islão..Citaçãocitacao"Não nos merece muito espanto o Aga Khan só poder ser sucedido por um homem. Nas monarquias europeias, até há muito pouco tempo era assim.".Uma mulher ismaelita não usa a cabeça tapada. Pode usar minissaia, por exemplo? Você vê maioritariamente as mulheres ismaelitas vestidas com algum recato, mas já vi mulheres ismaelitas com minissaia, sim. Mas não se deslocarão ao culto dessa forma..O Aga Khan só pode ser sucedido por outro homem. Afinal, como fica a mulher nesta equação? Fica igual ao que aconteceu em Espanha, onde o atual rei teve de fazer finca-pé para que a filha dele pudesse ser herdeira. Não nos merece muito espanto o Aga Khan só poder ser sucedido por um homem. Nas monarquias europeias, até há muito pouco tempo era exatamente assim. Em Espanha até há três, quatro anos era assim, e é aqui ao lado. Isto tem a ver com uma noção de sacralidade que se dá aos cargos, e o Aga Khan, apesar de ter o título de sua alteza, deveria ter um título muito mais próximo daquilo que se usa para o Papa e para o Dalai Lama - Sua Santidade. A função dele é religiosa, acima de tudo. Há toda uma presença masculina, todo um patriarcado nas nossas religiões de matriz mediterrânica..Mas neste caso, a sucessão é hereditária. Dentro do islão é a única que há, passa de homem para filho varão..Sendo certo que aqui houve a curiosidade de passar de avô para neto, "obliterando" uma geração. Com todas as questões sucessórias que as monarquias modernas também têm. De gente que abdica, que segue outras vidas..Citaçãocitacao"Há uma tendência das últimas três gerações por artistas de Hollywood.".Não teve a ver com facto de o pai do atual Aga Khan ser considerado um playboy? Aliás, foi casado com a atriz Rita Hayworth. Exatamente. Há uma tendência das últimas três gerações por artistas de Hollywood. De todos eles..O atual Aga Khan também é divorciado... Também. Não sei precisar, mas acho que também houve alguém de Hollywood metido ao barulho..Há um príncipe em Lisboa e traz com ele 45 mil pessoas.Os ismaelitas são, em regra, vistos como pessoas ricas. Sim, temos essa representação. Não sei dizer se isso acontece maioritariamente ou não, mas são bem-sucedidos nos negócios. Temos inúmeros exemplos disso em empresas, até cá em Portugal. Não acredito que todos os ismaelitas sejam ricos, mas há um sucesso nos negócios que tem uma expressão social grande porque há também um trabalho de grupo, dentro da própria comunidade. Há um apoio muito grande entre eles..A Sacoor e os hotéis Sana são dos negócios de ismaelitas mais conhecidos em Portugal. Que famílias são estas? São famílias portuguesas, perfeitamente bem integradas. Acho que em ambos os casos já traziam negócios de Moçambique. São as mais conhecidas, mas há uma rede de farmácias que começou em Oeiras, também de uma família Sacoor.