O tempo em que Neymar vestia as cores de Portugal

O jogador brasileiro ficou conhecido com o "Menino da Vila" pelo seu passado no Santos, mas foi na Portuguesa Santista, clube fundado por portugueses, que a sua carreira se iniciou
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Neymar é o nome de que todos falam nos dias de hoje, entre os elogios e as críticas que rodeiam os melhores. É aquele de quem agora todos esperam um rasgo de genialidade no Mundial 2018. Os reis das Bolas de Ouro, Ronaldo e Messi, já estão em casa, e os olhos estão postos no aspirante ao trono.

A cada história que se lê, ouve e vê sobre Neymar é lugar-comum ver colada ao seu nome, como se de uma segunda pele se tratasse, a designação de "Menino da Vila". É como se fosse um selo de qualidade, uma espécie de garantia para a vida. A designação vem de longe, de uma geração de jovens talentos do Santos que em 1978 surpreenderia o futebol paulista conquistando um campeonato estadual, com exibições marcantes no estádio que se situava em Vila Belmiro. Desde então, todos os jovens que um dia se fizeram jogadores no Santos passaram a ser assim conhecidos.

O pai jogava no campo, Neymar brincava na bancada

Mas antes de ser Menino da Vila, aos 6 anos, Neymar corria na bancada de um pequeno estádio em São Vicente, enquanto o seu pai jogava lá em baixo num campeonato amador. Roberto António Santos, mais conhecido por Betinho, dividia o seu olhar entre o que se passava no campo e aquele menino irrequieto que despertava a sua curiosidade.

"Era uma tarde chuvosa e o Neymar pai estava a jogar lá em baixo, enquanto o filho corria na bancada. Ele corria, saltava, pulava sem medo, e isso chamou a minha a atenção. Eu fui falar com a mãe dele, que estava por perto, e perguntei se o filho estaria interessado em jogar futsal num projeto para o qual eu estava a trabalhar. Ela ficou de falar com o pai e, na semana seguinte, Neymar veio. Vi o menino com a bola, e percebi que estava ali um talento natural", recorda Betinho ao DN.

O treinador não mais largou a criança, e Neymar criou por ele uma afeição. Um queria ensinar e ver crescer o talento do menino, o outro tinha a alegria de poder fazer o que mais gostava a todas as horas: jogar futebol.

Neymar, o jovem "metalúrgico"

A criança foi crescendo, assim como o seu talento dentro das quadras de futsal, tudo ao ritmo de golos e títulos, pelo Gremetal (Sindicato dos Metalúrgicos da Baixada Santista) e sempre sob o olhar de Betinho.

Aos 10 anos parecia estar na hora de passar a dividir as quadras com o campo de futebol 11. E a oportunidade surgiu através de um convite de Reginaldo, coordenador das camadas jovens da Portuguesa Santista, um clube com tradição - fundado em 1917 - que vestia com orgulho as listas verdes e vermelhas, símbolo de um Portugal que os seus fundadores deixaram para trás.

Deixemos o relato de Betinho para trás e oiçamos Reginaldo, o Fino, alcunha que ganhou quando também era uma criança na periferia de São Vicente (cidade perto de Santos) pela sua elegância e pelo jeito de falar num português correto. Porque os meninos da periferia sobrevivem, mas não vivem sem alcunha.

Neymar, a arma secreta do Liceu Paulista

Tudo isto começou porque um dia a TV Tribuna, filial da rede Globo, decidiu criar um torneio de futsal disputado pelas escolas da região. Após um primeiro ano de sucesso em que a repercussão local foi grande, o diretor do Liceu São Paulo, Hermenegildo Miranda, mais conhecido por Seu Gil, não se deu por satisfeito com o terceiro lugar e decidiu que era preciso investir e ir buscar os meninos que eram "bons de bola" em Santos. Aí entrou em ação Reginaldo Fino, coordenador das camadas jovens da Portuguesa Santista de futebol e experiente treinador de futsal.

"O Seu Gil viu a necessidade de ter um técnico de futsal mais preparado, que não fosse só professor de Educação Física, e foi quando eu recebi o convite para trabalhar lá e preparar a Copa Tribuna no ano seguinte", começa por contar ao DN.

Reginaldo percebeu depressa a ambição do diretor e pôs as cartas na mesa: "Você quer disputar esse campeonato para vencer. Eu tenho aí alguns meninos e se desse algumas bolsas poderíamos construir um 'timaço'"." A resposta do diretor foi pronta, como narra quem estava do lado de lá da secretária: "Você vê quantos meninos tem, mas eu não posso dar bolsas de cem por cento para muitos. Só para três ou quatro."

O treinador saiu de lá contratado e pronto para ir buscar os meninos. Neymar, que na altura já brilhava no Gremetal, era o principal alvo. Reginaldo foi até casa de Neymar pai, antigo jogador e duro negociador já na altura: "Ele disse-me que só libertaria o Neymar se a sua irmã Rafaela também fosse para lá estudar."

Seu Gil não ficou muito convencido porque teria de dar uma bolsa a uma rapariga que nem sequer ia jogar, mas o argumento do técnico nesta segunda conversa foi decisivo: "Você pode não querer trazer nenhum dos outros rapazes, mas se não ficar com este, outras escolas vão querer e perderemos o melhor jogador da região."

O Gremetal não estava satisfeito com o desenrolar desta história. Para evitar confusões, Reginaldo encontrou a solução. Já existia o futebol da Portuguesa Santista, só faltava o futsal para justificar a vinda do atleta. "Criámos a equipa de futsal da Portuguesa Santista, eu trouxe o treinador do Gremetal, o Betinho, e com ele veio metade da equipa, incluindo o Neymar."

A vida do pequeno jogador mudou. Passou a frequentar de manhã um colégio privado para o qual o seu pai não tinha dinheiro, da parte da tarde treinava futsal com as cores verde e vermelho da Portuguesa Santista, e à noite ainda havia tempo para vestir novamente a camisola lusa, agora para uma sessão de futebol de 11. Eram os primeiros pontapés da promessa num campo maior.

Chegar atrasado, entrar e resolver

Num clube pequeno e onde dinheiro era coisa que não abundava, tudo era feito e acontecia na base da boa vontade. "Para o Neymar poder ir treinar tivemos de pedir a ajuda de alguns pais. Uma pessoa ia buscá-lo a casa no seu carro, mas abastecia no posto de gasolina que pertencia ao pai de outro menino da Portuguesa. As boleias eram todas combinadas e cada um dava o que podia", conta.

E no meio desta logística, não raras vezes, o pequeno talento chegava atrasado aos jogos de futebol do Campeonato Paulista da categoria onde Betinho era o seu treinador. Reginaldo lembra esses percalços: "Essa equipa de sub-11 estava no auge, estava a jogar um 'bolão', até ganhava ao São Paulo. Às vezes o Neymar chegava atrasado porque morava longe e havia trânsito. O jogo poderia estar duríssimo, mas ele chegava, entrava em campo e tudo se resolvia com uma facilidade incrível".

A chegada ao Santos e a Vila Belmiro

Depressa o campo da Portuguesa ficou demasiado pequeno para Neymar, e a sua qualidade atraiu a atenção dos tubarões da região, vítimas dos seus dribles e dos seus golos. O São Paulo foi o primeiro a tentá-lo, mas a ligação de Reginaldo Fino ao Santos, onde já tinham treinado jogadores como Robinho e Diego, foi decisiva para o desfecho em 2004.

"O Santos veio atrás de uma indicação minha para Seu Abel (diretor do clube) e Zito (antigo campeão do Mundo ao lado de Pelé). Para levar o menino tiveram de criar as categorias de sub-11 e sub-13, porque não tinham e a Federação Paulista obrigava a que existissem as duas juntas. Todo este esforço por causa do Neymar, na altura com 12 anos", concluiu.

O menino da Portuguesa virou Menino da Vila e foi crescendo em idade, tamanho e talento. Era a joia da coroa de um reino que o queria ver o mais rapidamente no trono que um dia tinha sido de Pelé no Santos. Todos sabiam o talento que ali morava, a pergunta era quando é que ele estaria pronto.

Vagner Mancini: "O destino conspirou para que eu fizesse parte do caminho de um cara notável"

No dia 3 de julho de 2009, o Santos defrontava o Oeste perante um Estádio Pacaembu lotado com 20 mil espectadores. A expectativa existia sempre que ele se sentava no banco, mas a oportunidade nunca lhe tinha sido dada. Até que Vagner Mancini chama o garoto, trocam umas palavras, com Neymar sempre de olhos postos lá dentro, e o quarto árbitro ergue a placa para a substituição. Estava na hora.

"A direção do Santos não queria queimá-lo e achava que ele não estava pronto, mas nós víamos um grande potencial e achávamos que tinha capacidade para jogar. Um dia o Roni, avançado, lesionou-se e eu achei que era hora de o pôr à prova. Lembro-me quando chamei o Neymar para entrar aos 15 minutos do segundo tempo. A torcida do Santos entrou em delírio, gritavam o nome dele, sendo certo que o atleta nunca tinha jogado. Tenho lembranças marcantes desse dia", confessa Vagner Mancini, atual treinador do Vitória da Bahia.

Ginga para cá, ginga para lá, os adeptos levantavam-se, punham as mãos na boca para tapar o "oh" de espanto pelo que estavam a ver. De um letárgico 0-0 à entrada do garoto, o Santos partiu para uma vitória por 2-1.No final, o sorriso de Neymar abriu-se e, no seu jeito meio atrapalhado, atirou aos jornalistas que corriam até ele: "Comecei com o pé direito. Deu tudo certo. Segui o que o professor Mancini pediu."

O resto é a história que o mundo conhece. Hoje, Betinho continua ligado à criança que um dia descobriu, trabalha no Instituto Neymar e continua a ensinar os mais novos. Reginaldo mantém a sua busca por novos talentos agora no Linense, clube do interior do Estado de São Paulo. Neymar cresceu e, por estes dias, escreve a sua história no Mundial 2018 na Rússia.

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