"O supérfluo não tem lugar na arquitetura"

Os cinco finalistas do mais importante prémio de arquitetura da União Europeia são conhecidos amanhã.
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Danièl Modol, presidente da Fundação Mies van der Rohe, que o atribui, fala sobre os desafios da arquitetura contemporânea, que está a entrar numa nova era, com um papel mais social, a emergência de uma nova geração de arquitetos e atenção à memória dos lugares, porque estes são fortemente identitários na época das redes sociais. Uma entrevista feita por email em que o arquiteto e professor fala ainda sobre Lisboa e como a cidade deve olhar para si mesma para não se atraiçoar.

O prémio Mies van der Rohe 2017 tem 40 selecionados entre 355 nomeados. O que mostram estes projetos sobre a Europa?

Em primeiro lugar mostram que a habitação e o património são os dois desafios que as cidades europeias enfrentam na atualidade. Também encontramos um uso importante dos materiais tradicionais e vê-se como certas tendências, como a sustentabilidade e a tecnologia, estão agora totalmente presentes no processo arquitetónico. Continua a haver diferentes maneiras formais de expressar visualmente os resultados do processo arquitetónico e um peso fundamental da arquitetura pública. Outro aspeto é que há vários projetos que se ocupam da memória, não só com intervenções a recordar a história, mas também como intervenção no meio urbano e patrimonial, atualizando-o a novas necessidades.

Os jurados enfatizam a diminuição dos projetos de arquitetura icónicos, como mostra a seleção já realizada. É o final da era dos starchitects?

O prémio Mies van der Rohe valoriza a qualidade conceptual, técnica e construtiva dos projetos, mas de uma forma especial põe e vai continuar a pôr em destaque o valor da responsabilidade e compromisso social destes, desafios que a arquitetura atual está a enfrentar. A partir desta visão, sim podemos dizer que estamos numa nova era, em que prioritariamente a arquitetura pública, mas em geral a arquitetura, responde a uma filosofia diferente da dos projetos icónicos e fixa a sua atenção noutro tipo de objetivos, mais sociais. O iconismo diminuiu e encontramos uma forte relação entre as necessidades dos usuários dos edifícios e a cidade com o processo de desenho.

[citacao:Agora que dedicamos cada vez mais tempo à realidade virtual, o conceito de património ganha um sentido diferente]

Estas obras mostram também, segundo refere o júri, a importância das novas gerações de arquitetos. Também é uma renovação da arquitetura?

A arquitetura não é alheia às restantes dinâmicas da sociedade e por isso a renovação e o papel dos arquitetos e arquitetas jovens é a chave do nosso presente e futuro. Da minha experiência como professor na Universidade, na Escola de Arquitetura, vejo e trabalho quotidianamente com jovens e posso assegurar que a renovação é já uma realidade.

Quais são os principais desafios da arquitetura na Europa?

Como referi, as condições sociais atuais, muito marcadas na Europa pela crise económica, obrigam a priorizar a responsabilidade social e impõem-nos a otimização de recursos e um enfoque nos projetos desde a intervenção estritamente necessária. Obviamente isto não afeta a produção arquitetónica, em que atualmente o supérfluo não tem lugar, ganhando mais importância a qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs, e a cidade.

As velhas cidades europeias enfrentam atualmente o desafio da renovação do edificado. A arquitetura contemporânea está a resolver este problema criando um novo património?

A arquitetura da cidade é a que nos permite reconhecer paisagens urbanas próprias e desenvolver o nosso sentimento de pertença. A referência urbana das nossas vidas é hoje o maior património que temos. Agora que dedicamos cada vez mais tempo à realidade virtual, o conceito de património ganha um sentido diferente: passa do antigo e do testemunho de uma época passada, a ser uma realidade atual em que temos de nos referir ao único elemento que nos faz estar vinculados ao lugar. O património não será mais aquele conceito de antigo, será tudo o que nos rodeia materialmente e a arquitetura contemporânea dele faz parte.

Lisboa tem duas obras nesta pré-seleção, Portugal tem quatro. O que significam para a arquitetura portuguesa?

O primeiro vencedor do prémio Mies foi o Banco Borges e Irmão de Álvaro Siza em 1988. Desde então, 124 obras portuguesas foram nomeadas para o Prémio (20 em Lisboa). A arquitetura portuguesa - desde a restauração da democracia - enfrentou muitos desafios, e conta com um legado histórico importantíssimo, que lhe dá valor e qualidade. Nos últimos tempos, a implicação política que recebeu conjugou-se com o estímulo social e cultural de ser parte da União Europeia e creio que se isso se reflete nos prémios.

[citacao:Três dos projetos selecionados foram encomendados por clientes privados que confiam numa arquitetura de qualidade para melhorar as condições de trabalho e de vida nos seus edifícios]

Parece-me que os dois projetos mais icónicos nesta shorlist são os finalistas de Lisboa [MAAT e Fundação EDP]. Considera que a cidade está à procura da sua identidade?

As quatro obras portuguesas representam diferentes programas, diferentes escalas e contextos diferentes. Também verificamos que os ateliês de arquitetura são pequenos e na maioria trabalham a partir de concursos públicos. No entanto, três dos projetos selecionados foram encomendados por clientes privados que confiam numa arquitetura de qualidade para melhorar as condições de trabalho e de vida nos seus edifícios. Há uma evolução subtil mas importante da arquitetura portuguesa que está consciente das novidades da indústria da construção, da investigação, da tecnologia e do impacto do património e da periferia nas cidades. É uma arquitetura que deve saber olhar a tradição e o valor do construído na cidade para aprender com ele e não o atraiçoar, contribuindo assim para a identidade desta e não para a substituir.

Qual a importância do Prémio Mies van der Rohe?

O prémio tem como objetivo principal reconhecer e recompensar a qualidade da produção arquitetónica na Europa e, sobretudo, quer oferecer aos cidadãos e às instituições públicas uma oportunidade de entender melhor o papel cultural da arquitetura na construção das nossas cidades e estimular uma maior circulação de profissionais em toda a União Europeia.

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