O suicídio clinicamente assistido na Constituição que nos rege
A comunicação social divulgou recentemente uma declaração subscrita por um conjunto de professores de direito público na qual se afirma que os projectos de lei sobre o suicídio clinicamente assistido violam várias normas constitucionais e, de modo flagrante, a norma que confere o direito à vida. A referida declaração é estritamente conclusiva, não contendo quaisquer razões explicativas daquela afirmação. A ausência de explanatory reasons, indispensáveispara a reliability de qualquer proposição de ciência, não impede, no entanto, que se possa dizer que o conteúdo da declaração é tecnicamente equívoco e, independentemente dela, que há bons fundamentos para negar que a acção em causa seja (sequer) constitucionalmente vedada, o que também é válido, porventura mais ainda, para a sua descriminalização.
Sem prejuízo das diferenças entre os projectos, o denominador comum dos mesmos é o de se criar um conjunto extremamente exigente de condições, conjuntamente suficientes, para que um profissional de saúde deixe de ser criminalmente punido quando, de livre vontade, auxilia o suicídio de quem não o pode fazer por si. Entre aquelas condições estão, desde logo, tratar-se de uma decisão livre, de a pessoa padecer de uma doença efectivamente terminal, e de este quadro ser clinicamente comprovado em múltiplas instâncias. Trata-se, portanto, de uma antecipação da morte, sujeita a escrutínio rigoroso, em que a intervenção de um terceiro serve apenas para materializar a vontade do doente terminal.
O «caso constitucional» que aqui se coloca compreende, em rigor, duas questões. E a primeira é, desde logo, a de saber se o suicídio clinicamente assistido, nas condições descritas, éconstitucionalmente proibido ou permitido. A questão aparenta ter uma resposta simples na norma contida no enunciado «a vida humana é inviolável», uma proibição de atentar contra a vida que confere, no esquema Hohfeldiano de duty-claim right, o direito a estar vivo. Como a acção (a assistência) é efectivamente uma variável de matar, daí decorre que a proibição segue como se de uma implicação se tratasse.
Acontece, porém, que esta sequência é apenas umavisão redutora (e equívoca) desta questão inicial. Como é hoje comummente reconhecido, a Constituição compreende uma permissão genérica de acção (o direito geral de liberdade), norma que tornou inevitável aceitar que todas as normas constitucionais que estabelecem proibições ou imposições à conduta humana são sempre «normas em conflito»: se fazer X é proibido (seja X o que for), fazer X é também permitido (e com igual valor formal). Isto implica, portanto, que tanto aquela proibição de X como esta permissão de X são, em rigor, meros estatutos pro tanto, que dependem de uma pon-deração que defina o estatuto deôntico definitivo (sempre que o sistema, como ocorre aqui, não o faça directamente). A conflitualidade normativa dentro da Constituição pode ser pouco perceptível para quem tenha menor proximidade técnica a estas matérias; mas é um resultado natural de fenómenos de intersecção normativa que são, na realidade, inevitáveis. Em múltiplos casos, porque a prevalência de uma norma sobre outra é intersubjectivamente evidente, essa conflitualidade é irrelevante (e nem se chega a notar); noutros, no entanto, não é assim: sempre que haja razões consistentes a suportar cada uma das alternativas da disjunção constitucional (X é proibido ou permitido), um complexo «processo de escolha» torna-se inevitável. E, nesse processo, é apenas a racionalidade argumentativa que demonstre o peso de cada alternativa que pode afirmar a prevalência de uma sobre a outra.
Acresce a isto que o conflito constitucional absorve ainda outra norma, particularmente controversa (inclusive quanto à sua condição ontológica de norma). Especificamente, a que estabelece, como também tem sido defendido, a imposição de tratar a pessoa humana de acordo com o valor insubstituível dessa sua condição. Na disjunção constitucional já criada (X é proibido ou permitido), esta imposiçãovem reforçar o lado da permissão: faz parte do valorinerente à condição humana recusar uma existência que se considera indigna, tal como também parece ser da mais básica humanidade satisfazer a vontade livre de quem quer suprimir um sofrimento insuperável. Naturalmente, não é relevante para o conflito quantas são as normas que militam em cada um dos lados da disjunção; o que é relevante são as razões substantivas de cada alternativa. E, neste contexto, nem sequer é necessário trazer os conhecidos argumentos que apoiam cada uma das duas soluções em conflito (o espaço certo do combate moral). Basta pensar que a disjunção constitucional é, em rigor, um cenário básico de balancing discretion, no qual a permissão é uma opção tão legítima como o são todas as opções discricionárias do legislador (não censuradas num juízo de proporcionalidade).
É importante notar que a conflitualidade normativa (relevante) com o direito a estar vivo é mais significativa do que possa pensar. Para além do próprio suicídio autónomo, expressão da prevalência da liberdade do titular, ou mesmo da acção de matardentro da legítima defesa proporcional, há ainda todos os casos em que duas proibições não se podem satisfazer simultaneamente (os dilemas trágicos dafilosofia moral; um único medicamento para dois doentes em risco de vida, por exemplo). Aqui, as duas proibições incompatíveis implicam que a acção escolhida seja, por derivação lógica, permitida (contrariedade deôntica no square of deontic modalities). Evidentemente, esta ilustração daconflitualidade normativa do direito a estar vivo é, para o presente «caso», meramente contextual. Mas é pertinente, no entanto, pelo seguinte: para além de provar que o direito a estar vivo é também um direito relativo, como todos, tem ainda a função de mostrar que há casos de «permissão de morte» que são, comparativamente com o suicídio clinicamente assistido, bem menos suportados na dignidade da pessoa humana. Por isso, mesmo que a tal «violaçãoflagrante» fosse um juízo all norms considered, a mesma teria de acomodar o irrecusável facto de o direito português permitir tanto ou mais (morte) por muito menos (dignidade).
A segunda questão do presente «caso constitucional» é a saber da (in)compatibilidade constitucional da descriminalização; uma questão que, evidentemente, tem na proibição constitucional do suicídio clinicamente assistido uma condição necessária mas não suficiente (e que só se verifica se a opção permissiva for desproporcional): como é sabido, seria um claro non sequitur dizer que só por ser proibido deve ser criminalizado. Do que se trata aqui, assim sendo, é de saber há alguma norma constitucional que imponha a criminalização.
Há apenas uma norma relevante para esta segunda questão: o dever estadual de proteger os direitos fundamentais. Uma norma que, bem vistas as coisas, é de realização alternativa e progressiva (os direitos fundamentais protegem-se por acções estaduais distintas e em diferentes graus), e que lança sobre esta segunda vertente do «caso» um indisfarçável cenário de discricionariedade: o Estado não está obrigado a criminalizar condutas adversas aosdireitos fundamentais; está, diferentemente, obrigado a protegê-los com as medidas adequadas àsadversidades em causa. Por isso, e se dentro doslimites da proporcionalidade, o Estado tem um amplo espectro de escolha quanto ao modo deexercer esse dever.
Não é muito nítido, no entanto, qual é o direito fundamental que o Estado deve aqui proteger. O direito a estar vivo de uma pessoa que, à luz das suas condições terminais de saúde, quer morrer (direito que seria preterido pela acção de liberdadedo próprio se essas condições o não impedissem) ? Bem, de alguma forma, sim e não. Sim, apenas na estrita medida em que não há aqui outro direito fundamental (a integridade física e outros são consumidos ou inevitavelmente sujeitos à mesma derrotabilidade). Não, porque o Estado não estaria a proteger o direito fundamental destes destinatários; estaria, antes, a impor o seu exercício a quem não o quer exercer. E, muito claramente, soa mesmo mal, tecnicamente, que a imposição do exercício de um direito seja o modo pelo qual se exerce o dever de o proteger.
Uma última palavra é ainda devida. As normas constitucionais aqui relevantes são praticamente iguais às que vigoram na Alemanha, razão pela qual o «caso constitucional» português tem ali as mesmas respostas. Recentemente, o Tribunal Constitucional Federal Alemão, por deliberação da sua segunda câmara, considerou inconstitucional a criminalização do suicídio assistido, considerando-o permitido em termos muito mais amplos do que os constantes dos projectos agora em discussão na Assembleia da República. Apesar da irrelevância do direito alemão para a solução de um «caso constitucional» português, a proximidade normativa assinalada permite levantar o véu quanto à eventual inconsistência de afirmações de «violação flagrante», cuja função mediática acaba por ser lida na comunidade científica como a mera metamorfose de um hardcase num easycase, operada através da invisibilidade das normas que em qualquer circunstância impediriam tamanha operação de cosmética (o espaço errado do combate moral). É que, em bom rigor, tudo aponta no sentido de se tratar de um «caso constitucional» complexo e de as certezas não demonstradas, tão inimigas dos valores epistémicos, poderem sempre criar o risco de um qualquer efeito boomerang.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa