O SNS, as carreiras e o que somos agora

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Quando, como secretário de Estado da Saúde e com todo o apoio do ministro dos Assuntos Sociais, Dr. Luís Barbosa, de quem dependia, elaborámos, com o entusiástico esforço de um grupo de colaboradores, o decreto das Carreiras Médicas (o decreto-lei 310/82), senti que, finalmente, tínhamos realizado o que civicamente a classe tinha defendido dez anos atrás, no célebre movimento médico de que o Relatório das Carreiras foi expressão.

Ficou neste decreto consagrada a existência da especialidade de clínica geral e medicina familiar, definidos os tempos de formação das diversas especialidades, a forma de acesso e progressão na carreira, os diversos regimes de trabalho.

E, o que era também essencial, definiram-se remunerações que, na época, foram iguais às das carreiras de maior prestígio na função pública.

Desde então, e durante cerca de vinte e cinco anos, com algumas variantes que os sucessivos governantes introduziram, mantendo o essencial, foram estas as regras seguidas na administração dos internatos, na abertura e execução dos concursos de titulação e de provimento, nas relações com a Ordem dos Médicos.

Durante esse período, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi-se construindo como serviço público, em que profissionais de carreira, periodicamente avaliados pelos seus pares, progredindo por mérito, aceitavam, cada vez em maior número, ser servidores do Estado, servidores da comunidade em troca da segurança do emprego, da autonomia das funções e da liberdade de planeamento das suas instituições.

Aos poucos, aproximávamo-nos dos objetivos nucleares de um SNS moderno, centrado no doente, em que a liberdade de escolha é um direito indiscutível, o financiamento do sistema justo e suficiente e a concorrência entre o setores público e privado, autónomos e independentes, seja prática transparente.

Éramos um sistema de saúde que a Organização Mundial da Saúde considerou o 12.º no ranking mundial, éramos, dizia eu na altura, um serviço talvez suficiente, mas que tínhamos de fazer um enorme esforço para nos tornarmos excelentes, porque na Saúde só a excelência é permitida.

E agora, em 2016, o que somos?

Muita coisa evoluiu, se criou, as estatísticas de saúde continuaram a melhorar a bom ritmo, as tecnologias de ponta foram instaladas, os hospitais melhoraram o seu funcionamento, o ambulatório e os cuidados de proximidade, os centros de saúde, USF, os especialistas médicos de família, adquiriram e conquistaram a posição cimeira na estrutura dos serviços de saúde, fazendo desaparecer a triste lembrança da medicina das caixas.

Mas tem-se vindo a perder aquilo que o decreto 310/82 define como essencial do SNS: um serviço público, servidor humanizado do doente, hierarquizado pelo mérito, com acesso e progressão por concursos públicos, em que as suas carreiras profissionais sejam protegidas e dignificadas pela sociedade como devem ser os "servidores do Estado".

É, por isso, urgente a revisão do sistema da contratação individual de trabalho e a reposição da progressão nas carreiras por concurso de responsabilidade institucional.

A eficácia e o crescente prestígio dos serviços obrigam a uma atualização estrutural e comportamental do nosso SNS, que a nossa Constituição proclama, que a população exige, que a história do Portugal democrático confirma, mas que infelizmente continua a ser desprezado por uma visão administrativa e financeira que o vai degradando.

Para isso os profissionais deverão estar prontos para colaborar, como, em 1960, os médicos estiveram, para propor muito daquilo que, felizmente, já somos.

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