O Silêncio dos Inocentes
I - A sociedade que nasceu da revolução tecnológica, a sociedade dos nossos dias, alterou o "ritmo das coisas", é certo. Mas alterou, sobretudo, a forma como olhamos para o presente - e o tempo relativo desse olhar.
Não é ainda o momento de percebermos o que ganhámos e perdemos com o mundo global, nem, confesso, acredito que o possamos fazer brevemente. É, no entanto, hora de refletirmos um pouco sobre um sub-aspecto deste novo universo, absolutamente essencial ao convício social: qual o conteúdo do atual Estado de Direito, olhando para sob o prisma da Presunção de Inocência?
II - No mesmo dia, em horas e locais diferentes, dois acontecimentos desconexos entre si, ambos intimamente ligados à visão que temos, nos dias de hoje, sobre o que deve ser o Estado de Direito. levaram-me à reflexão que aqui vos trago.
Bem de manhã, numa esplanada vizinha a um Tribunal de Comarca do interior beirão, ouço o seguinte comentário a uma notícia de jornal que relatava, na primeira página, em letras garrafais, o arquivamento de determinado processo mediático: "Que vergonha, que vergonha! Eu queria que ele fosse acusado". O indivíduo gritava, sem ligar a quem o rodeava, olhando para um amigo, que anuía, abanando a cabeça com o mesmo ar de desprezo dos que lançam a infâmia sobre "esta Justiça que liberta os nossos condenados."
Horas depois, já nas Caldas da Rainha, num encontro de Advogados em prática individual, ouço o Dr. José António Barreiros, com a autoridade que todos lhe reconhecemos, declarar o evidente: "a Presunção de Inocência está morta - e essa é a morte do Estado de Direito."
III - Infelizmente, as duas proclamações apontam para o mesmo cenário: a sociedade dos nossos dias, perante o silêncio cúmplice de quem tem o dever de evitá-lo, está prestes a sacrificar um dos mais importantes Direitos Fundamentais do nosso tempo, princípio basilar do Estado de Direito Democrático, em nome de uma ideia de "Justiça" rápida, realizada sem defesa ou contraditório, sem respeito pela legalidade das provas.
São muitos os factos que apontam nesse sentido. Mas aqui, hoje e de forma sumária, reflito sobre a pedagogia da Democracia material a que estamos adstritos e que os Advogados devem, como primeira obrigação, defender, promover e, se necessário for, ensinar.
IV - Por isso mesmo, é hora de realizar o "Consenso da Justiça", promovido, quem sabe, por uma Ordem dos Advogados proativa, onde todos os profissionais que a concretizam, administrando ou não, participem em pé de igualdade. Aí, mais que numa lógica de corporação, devemos perceber, de uma vez por todas, se uma Justiça lenta, com um inquisitório quase absoluto na fase de investigação criminal, é o caminho que se pretende para a sua boa aplicação.
A divisão clássica entre bagatela criminal e crime complexo já não é (nunca foi, diga-se) exequível nem aceitável.
Ao invés, a promoção de uma investigação que respeite os Direitos Fundamentais de todos os sujeitos processuais, independentemente da sua posição, rápida, eficiente e eficaz, com prolação de despachos concisos e percetíveis e a aplicação de medidas de coação justas, adequadas e necessárias, que não dependam da pressão acusatória, é absolutamente urgente: se aos Advogados se exige que não utilizem métodos dilatórios nos processos que lhe estão confiados, ao MP impõe-se que investigue rapidamente, arquivando e condenando segundo provas e não sobre juízos morais, éticos, sociais ou políticos - acusar e arquivar também é, lamento ter de escrevê-lo como se não fosse uma evidência, aplicar o Direito.
V - É aqui, na questão charneira da investigação criminal complexa e mediática, que a defesa intransigente da Presunção de Inocência se impõe com maior urgência e no respeito por outro princípio: Liberdade de Imprensa, num mundo que se quer de informação livre e independente. Essa Imprensa que nos liberta da informação controlada, deve ser, também, a primeira a promover esse princípio sacrossanto do Estado de Direito.
Admitir, no âmbito judicial, que os processos em investigação possam ser discutidos na praça pública, sem que aos arguidos/suspeitos seja assegurada defesa, é permitir a barbárie judicial - e é, assuma-se definitivamente, a condenação sem retorno. O que nenhum dos agentes da Justiça, creio, pretende.
Aqui chegados, cabe voltar ao "Consenso da Justiça" e ao papel que nos cabe a todos na defesa do Estado de Direito. A condenação prévia, ainda que num juízo moral, é um erro que sai caro: não há nada pior que um inocente julgado e condenado. Seja no Tribunal, seja à sua porta.
Vamos a isso?
Advogado