O sermão da campanha

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O calendário litúrgico garantia que aquele era apenas mais um domingo do chamado "tempo comum", que separa o Natal da caminhada para a Páscoa. Talvez por isso, no domingo passado o calendário litúrgico não conseguiu cativar as atenções do padre Lereno, que viu os seus pensamentos fugirem para um outro calendário mais sedutor: o calendário eleitoral.

É preciso compreender a situação, tal como a terá visto o padre do seu púlpito. Aquele era o dia de arranque oficial da campanha para as eleições. A direita, a sua querida direita, parecia estar em apuros e a esquerda, a maldita esquerda, ameaçava regressar ao poder. Uma "esquerda moderna", é certo. Mas isso só podia piorar as coisas: se a esquerda lhe causava alergia, a simples palavra "moderna" causava-lhe arrepios. Depois, o microfone estava mesmo ali, mesmo a jeito. E ainda por cima a missa ia ser transmitida em directo pela rádio. Francamente, "um homem não é feito de ferro!", terá pensado o padre Lereno, com a sabedoria de uma vida inteira a ouvir os pecados dos outros. E se bem o pensou, pior o fez: o padre cedeu à tentação e resolveu transformar a sua (?) missa no comício de abertura da campanha eleitoral.

O caso tem uma importância diminuta para a campanha. Em primeiro lugar, porque se trata de uma voz pouco representativa no interior da Igreja e nada significativa no plano mediático; em segundo lugar, porque os leigos católicos, entre os quais me incluo, estão suficientemente acostumados a homilias menos felizes ou até incompetentes para saberem dar o devido desconto quando tal se torna necessário; em terceiro lugar, porque o tom quase medieval com que foram abordados temas muito complexos da actualidade social e eclesial ("divórcio nunca!", chegou-se a proclamar) traduz uma tão confrangedora incapacidade para perceber o mundo de hoje que só pode suscitar indiferença ou rejeição. Quem não entende o mundo, dificilmente se fará entender por ele. A verdadeira questão que este sermão coloca é outra e diz respeito às relações da Igreja com a política. E é na qualidade de católico que aqui deixo algumas notas sobre o assunto.

Primeiro ponto: é perfeitamente legítimo que a Igreja recorde aos cristãos as implicações sociais e políticas (em sentido amplo) do cristianismo. Essas implicações existem e não são poucas, como decorre da vastíssima doutrina social da Igreja (DSI), do Concílio Vaticano II e dos documentos pastorais dos bispos. Neste sentido, tem todo o cabimento não só o apelo ao voto, enquanto cumprimento de um dever cívico de participação política, como a afirmação da relevância dos princípios da doutrina da Igreja para efeitos da determinação do sentido de voto de cada cristão, de acordo com a sua livre consciência individual e tendo em conta que a DSI, no seu conjunto, é compatível com diferentes programas partidários. Foi isto que fez, com razoabilidade e equilíbrio, a própria Conferência Episcopal, em nota pastoral emitida a propósito destas eleições.

Segundo ponto: a intervenção do padre Lereno manifestamente não partilha da razoabilidade e do equilíbrio revelados pela Conferência Episcopal. Desde logo, porque se permitiu utilizar uma homilia para, a despropósito das leituras, dar orientações para o voto; depois, porque o fez sem se conformar com a nota pastoral dos bispos (incluindo o seu próprio bispo), facto especialmente grave porque se tratou de uma homilia transmitida pelos meios de comunicação social. De facto, o padre Lereno pecou, simultaneamente, por excesso e por defeito. Por excesso, porque pretendeu deduzir dos princípios um determinado julgamento de certas propostas políticas concretas apresentadas pelos partidos concorrentes às eleições; por defeito, porque ostensivamente omitiu ou secundarizou outros princípios da mesma doutrina, assim fazendo eclipsar toda a dimensão social, não obstante os bispos a terem expressamente apresentado como igualmente relevante para a determinação do sentido de voto. O resultado deste exercício selectivo foi, como obviamente estava pensado para ser, um sermão manifestamente tendencioso do ponto de vista político-partidário.

Terceiro ponto: os partidos políticos, de um modo geral, reagiram bem, sem se mostrarem excessivamente incomodados. Veremos se, quando chegar o tempo oportuno, a Igreja reage bem, sem se mostrar excessivamente comodista.

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