O senhor embaixador
Na receção do hotel, Carlos Ferreira conversa com um homem de meia-idade de fato escuro. Ainda é noite e lá fora o BMW X5 tem o motor ligado. A distância é curta até ao ginásio, o primeiro destino. Todos os dias, às sete da manhã, está a pedalar na bicicleta. Quando pode, prefere fazê-lo ao ar livre. «Com a vida que tenho, tem mesmo que ser...»
Aos 55 anos, é dono de três restaurantes, duas importadoras de vinho, uma empresa de catering e uma quinta no Douro. É um dos portugueses mais bem-sucedidos do Canadá e talvez o cidadão nacional mais bem integrado na região do Quebeque. Todos os anos doa mais de trezentos mil dólares canadianos (216 mil euros) para obras de caridade. Na garagem, tem cinco automóveis e vive num condomínio privado, a poucos minutos do centro da cidade, e já convidou Robert de Niro a sair do seu restaurante mais antigo, o Ferreira Café, porque estava um pouco excitado. Foi homenageado num jantar, em outubro passado, em que cada um dos duzentos convidados desembolsou dois mil dólares (1500 euros) para degustar a arte de chefs conceituados de Montreal, Paris e Nova Iorque. Ninguém diria que há 16 anos esteve à beira do suicídio, por não ter dinheiro para pagar uma dívida.
O primeiro encontro com Carlos Ferreira durou pouco mais de três minutos. O tempo de lhe apertar a mão no corredor do terceiro piso de um hotel no centro de Montreal [Muito prazer], subirmos de elevador até ao 30.º andar [Foi boa a viagem? Chatearam muito na fronteira?], abrir a porta do quarto e explicar que não havia mais nenhum livre exceto aquela suite de dois andares com vista sobre a cidade. Não sei se tinha que ver com as cinco horas de jet lag, das viagens de avião Lisboa-Zurique-Montreal ou de não dormir há quase um dia, mas aquilo parecia saído de um filme. Felizmente, a noite de sono relativizou o primeiro impacte e agora ali estávamos, a caminho do ginásio.
«Ontem não pude dar grande assistência, tive um jantar de beneficência com quatrocentas pessoas». diz. O empresário português está totalmente inserido na sociedade canadiana, faz parte da direção do Hospital Sainte Justine, é presença assídua na comunicação social do Quebeque e o seu dia parece ter sempre horas a menos do que aquelas de que necessita. Conduz com pressa até ao ginásio de Paulo Saldanha, um luso-canadiano que inventou o treino de bicicleta Power Watts. De calções e T-shirt de lycra, lenço na cabeça e com o olhar nos ecrãs, Carlos Ferreira vai transpirando. Uma das portas do ginásio está aberta e barulho da chuva e da trovoada servem de banda sonora. «Parece um cavalo selvagem», diz Paulo. «Quer sempre correr muito e ir em frente, mas é bom ter essa energia controlada.» O suor escorre pela testa, mas mantém a cara de póquer, mastigando insistentemente pastilha elástica. «Nunca se percebe o que está a sentir», garante o treinador que cobra 45 dólares por hora.
«Ontem, no jantar, houve um sorteio. Ganhei uma viagem para seis pessoas em jato privado ida e volta para Nova Iorque.» A sorte protege os audazes. A caminho do Habitat 67, o condomínio privado onde vive há quase à 16 anos, desde que inaugurou o Ferreira Café, a joia do seu império, vai desfiando: «Quando cá cheguei, há 36 anos, lembro-me de ter visitado este local e de pensar que, quando fosse milionário, gostava de comprar aqui uma casa. Isso nunca me saiu da cabeça e 20 anos depois consegui.» O complexo foi pensado de forma arrojada por um arquiteto israelita. Fez parte da transformação de Montreal para os Jogos Olímpicos de 1976 e é hoje um sítio para as elites da cidade. Subimos as escadas deste kasbah moderno de blocos de betão sobrepostos, labirinto arquitetónico, que não deixa adivinhar o que ocorre dentro de cada apartamento. Abre a porta, contemporânea, e precipita-se para o iPad, de onde controla o televisor topo de gama. Na RTP Internacional, o Jornal da Tarde já leva alguns minutos. A T-shirt molhada do suor e os ténis ficam no chão da sala. Acabará, mais tarde, por levar os despojos do treino para a casa de banho. CD, livros e molduras com fotografias das filhas decoram o espaço. O piano e algumas guitarras autografadas arrematadas em leilões de solidariedade preenchem o que falta, a meias com o sofá e quadros nas paredes. «Não há vida familiar, sou separado. A minha filha mais velha tem 26 anos e dois filhos, vive em Toronto. A mais nova vive cá, tem 18. A do meio está a estudar em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Não sou muito de família, não vejo muito os meus netos. Sou um tipo que se habituou a viver sozinho, sou um solitário. Estou perto de tudo e de todos e rapidamente reajo, mas preciso do meu espaço.»
O duche é rápido, o tempo suficiente para ouvir as últimas de Portugal e descobrir os Starlight. «Você não vale nada, mas eu gosto de você», canta o vocalista. A publicidade refere-a como a banda portuguesa de maior sucesso na América do Norte.
Arrancamos em direção à Rua Peel, uma das principais de Montreal. No número 1446, a funcionar desde 1995, o Ferreira Café é ponto de encontro, ao almoço e ao jantar, de alguns dos nomes mais influentes da sociedade do Quebeque. Portugueses, nem tanto. «Um português vai ao Ferreira e acha que está a pagar-me o próximo Porsche. Não pensa no momento, na refeição, no prazer. Só os de topo ou os que vêm cá de férias passam pelo Ferreira. É o restaurante de referência da cidade.» E a viagem continua. «Logo que abrimos, ganhámos um prémio de design. Já ganhei tudo com este restaurante e o que quero é veicular uma imagem diferente da que os emigrantes transmitem. Aqui, somos vistos como pessoas de baixo nível. E em Toronto ainda é pior. Mas em Portugal também. Às vezes, quando me apresento a alguém também sinto que me olham apenas como emigrante. Com algum desprezo.»
São nove horas. O pequeno-almoço é no Vasco da Gama, o segundo estabelecimento de Carlos Ferreira no Canadá. Sanduíches, saladas, pastéis de nata e café são as especialidades. Jorge, um dos irmãos, está à frente do projeto. A sala está cheia e já se preparam as caixas de almoço que serão distribuídas mais tarde pelas empresas do centro da cidade. É outro dos negócios de Carlos, o catering Lunch Montreal.
Entre uma chamada telefónica e uns papéis para ler, chegamos aos escritórios centrais do império Ferreira. Na mesma sala, quatro secretárias. Atrás da sua há uma fotografia de Carlos e um velho mapa de Portugal, daqueles que víamos nas antigas escolas primárias. Pelas paredes, além das estantes repletas de dossiers, fotografias de momentos-chave: a gala anual dos chefs, em que juntaram oitenta mil dólares para o Haiti, com o primeiro-ministro do Quebeque, Jean Charest, as filhas em casa da cantora Celine Dion, os duques de Cambridge, William e Kate, a cozinhar num evento gastronómico e o ator e apresentador de televisão Fernando Mendes no restaurante.
O telefone não para de tocar. Atende sempre, vai saltando de assunto em assunto, francês, inglês ou português. Resolve problemas, marca encontros. Em cima de duas secretárias, os ecrãs de videovigilância. Só os funcionários circulam pelo espaço do Ferreira Café. Falta uma hora para o meio-dia. É quinta-feira e já não aceitam reservas para o fim de semana. Numa das prateleiras, o dossier de imprensa de 2010 chama a atenção, com centenas de artigos, perfis e notícias sobre os restaurantes e a figura de Carlos Ferreira. O empresário português parece não se deslumbrar: «O problema é que não se pode acreditar em tudo o que eles dizem.»
O mediatismo de Carlos é comprovado com a presença em diversos programas de televisão canadianos. Num deles, partilhou o ecrã com um «inimigo dos ricos». A ideia era ouvir os dois lados da discussão. «O tipo não compreendia o capitalismo e as pessoas têm de perceber que os ricos contribuem mais para a sociedade do que os pobres, fazem que a sociedade seja melhor. Dei-lhe dois exemplos: um tem uma casa de 4,5 milhões e o outro uma de 45 mil dólares. Quem contribui mais para a sociedade?» E garante ser um bom produto televisivo: «Faço emissões onde cozinho e tenho sempre boas audiências.» E não só no mundo da restauração. Em cima de mesa tem um envelope com vinte bilhetes para os jogos de hóquei no gelo dos Montreal Canadians. O pavilhão, a poucas centenas de metros do escritório, está quase sempre lotado e ele aproveita para oferecer os ingressos a alguns funcionários.
«Quando cá chegámos isto era muito atrasado. Eram muito fechados. Muito racistas, e não só para os portugueses. Os canadianos sentiam-se ameaçados pela emigração. Com os anos, a mentalidade mudou.» Carlos e Júlio, um dos irmãos [ao todo são oito, cinco homens e três mulheres], chegaram a Montreal em 1975. Com 19 anos, o soldador nascido em Estarreira deixou a praia da Torreira, Murtosa, e juntou-se ao pai, que já tinha imigrado. No primeiro dia no Canadá, fez o mesmo que muitos dos portugueses: foi lavar pratos para o hotel Hilton do aeroporto. «O diretor era açoriano, era uma mafia de portugas naquele hotel. Foi o lugar onde fui mais maltratado neste país.»
Nunca tinha almoçado ou jantado num restaurante. Estreou-se em Montreal, num restaurante português. Comeu bife e batatas fritas. Vieram os anos da fábrica de metal e construção de hidráulicos, enquanto continuava a lavar pratos e a servir à mesa em restaurantes, à noite. «Tínhamos sempre dois trabalhos, um até às cinco e outro das cinco à meia-noite. Sete dias por semana, durante 15 anos. Chegava a casa ao sábado e adormecia nas escadas.» A soldadura deu lugar aos restaurantes quando se tornou ajudante de pasteleiro. E depois motorista na distribuição de pão.
Foi assim durante 12 anos, até surgir a ideia de abrir uma padaria de pão antigo, tal como as que tinha ouvido falar que existiam em Paris. Mas entretanto conheceu a canadiana Martine, com quem viria a casar, e o amor juntou-se ao negócio: ficou à frente da maior parte das lojas/pastelarias Van Houte, detidas em cinquenta por cento pelo sogro. Foi o ponto de viragem. De um volume de negócios de oitocentos mil dólares anuais, passou para 1,8 milhões em apenas três anos. Instalou as primeiras esplanadas nos passeios de Montreal e começou a faturar quatro mil dólares por dia. «E aí começou o sonho de ter um restaurante português em Montreal. Toda a gente pensava mal de Portugal, que era só sardinhas em lata e gente burra.» A 1 de dezembro de 1995 começaram as obras e a limpeza do local que é hoje o afamado Ferreira Café, uma antiga pizaria. Nesse dia, o pai de Carlos morreu.
Era preciso equipar o restaurante. Por isso veio a Portugal comprar pratos e copos e procurar um chef que alinhasse no projeto. Nada. «Olhavam-me de lado. Queria ter porcelana portuguesa e muitos nem me abriam a porta. Não estava à espera de mais, sou um emigrante português.» Acabou por fazer uma encomenda de pratos brancos, contratou uma pintora canadiana, pintaram os pratos, partiram-nos e colaram-nos na parede. Tornou-se a imagem de marca do Ferreira Café. O chef, entretanto contratado no Canadá, era português, mas desapareceu a duas semanas da abertura do restaurante. Colocou um anúncio no jornal e surgiu Marino Tavares, ainda hoje chef principal do restaurante. As ementas foram pensadas por Carlos, inspiradas na gastronomia portuguesa e siciliana. Experimentava os pratos ao fim de semana, em casa, para os amigos. Chegavam a ser mais de vinte à mesa.
Entretanto, tinha acordado com o construtor que este só receberia o pagamento quando o banco disponibilizasse a verba entretanto acordada. O montante, sem a compra de vinhos incluída, já atingia 1,3 milhões de dólares. Era tempo de fazer contas. «O gestor de conta recostou-se na cadeira e disse-me: "Sabes, os restaurantes dão muito má fama e já não sei se vou emprestar-te o dinheiro.» Perguntei-lhe se estava a brincar. Não estava. Só queria pôr uma bomba no restaurante e dar um tiro na cabeça. Devia oitocentos mil dólares a um amigo, cem mil a outro e achei que estava tudo acabado. O dinheiro é uma coisa, mas a responsabilidade de dever dinheiro a alguém é muito diferente.»
Nessa noite acordou a chorar. «Estive dez dias metido em casa. Pensava matar-me. A minha mulher ia trabalhar, as miúdas iam para a escola, a empregada tratava da casa e eu andava a seguir os raios de sol através de uma janela. Pensei em tudo: comprimidos, atirar-me de uma ponte... e só pensava "E se depois não morro?" Não consegui.»
Começou a ser medicado e a mulher acabou por afástá-lo da tomada de decisões. O restaurante ia mesmo abrir e ele precisava de descansar. Estava tudo tratado: festa, convidados, encomendas, fogo de artifício, rua fechada ao trânsito, tudo a postos. Só que... «Caiu um dilúvio que era mais fácil andar de barco do que de carro», recorda hoje com um sorriso. Os quatrocentos convidados abrigaram-se como podiam e lá dentro, no meio da confusão, um dos clientes queimou, com um cigarro, o olho da filha mais nova de Carlos. A menina, que transportava a bandeira portuguesa encabeçando o rancho folclórico da comunidade, foi para o hospital. «Peguei no microfone e ameacei que punha toda a gente no olho da rua.» Uma confusão.
Mas no dia seguinte o restaurante estava cheio. Tinha 120 vinhos do Porto a copo e 140 referências de vinhos portugueses. «Foram três meses seguidos, noite e dia, com a casa cheia. Toda a gente escrevia e falava sobre nós. Não houve puta de depressão para ninguém!»
Em 2005 inaugurou o Vasco da Gama e o F Bar abriu portas em 2010. O Ferreira Café continua a ser o restaurante mais famoso e fatura 6,4 milhões de dólares canadianos [4, 9 milhões de euros] por ano. Mick Jagger, Nicholas Cage, Isabelle Adjani, Morgan Freeman ou Pierce Brosnan são alguns dos clientes famosos. O antigo Bond passou três meses em Montreal a filmar e aparecia quase todos os dias. Já o mesmo não pode dizer de Robert de Niro: «É meio palhaço, tive de lhe pedir para se acalmar ou ir-se embora.»
A fama que alcançou nunca o fez esquecer as raízes portuguesas da cozinha. O peixe continua a ter um papel principal nas ementas, tal como as 240 referências de vinho quase todos nacionais. Como o Barca Velha que abre à mesa do F Bar, o restaurante mais trendy. Lá fora, no Quartier des Espectacles, a Place des Arts, onde, de cada vez que há espetáculos ao vivo, se juntam mais de cem mil pessoas. Nesses dias «há demasiada confusão» e Carlos fecha o restaurante. Neste paga a renda mais baixa: 2500 dólares canadianos por mês [1900 euros], contra os 16 mil do Vasco da Gama e 25 mil do Ferreira. Números, são apenas números na cabeça de Carlos Ferreira que não esquece os 120 mil euros que ainda lhe devem em Portugal. «Tens de manter um standard de qualidade. Hoje ninguém quer este ramo porque é escravatura e dá pouco dinheiro. Os produtos aumentaram trinta por cento nos últimos anos, os impostos aumentaram muito e não se pode dizer ao cliente que o prato custa cinquenta e antes custava trinta. Não posso fazer isso. A minha política é de preocupação com os pormenores. Ser diferente dos outros e oferecer mais, ter presença, alma e preocupação com o bem-estar.»
Tudo isso parece ter resultado. Numa noite fria de sábado, Carlos é o centro das atenções no jantar de homenagem e angariação de fundos para crianças vítimas de abuso e violência. A sala principal do Centro Bell está cheia: duzentos convidados distribuídos por vinte mesas, cada uma delas a valer dez mil dólares, dois mil por cabeça. Há poucos portugueses. Entre eles Carlos, os irmãos Olívia e Jorge, e o chef do Ferreira, Marino Tavares. Os outros são políticos, socialites, empresários, estrelas da televisão local, amigos de longa data, potenciais investidores, artistas... O menu é confecionado por chefs Michelin vindos de Paris, Montreal e Nova Iorque. Carlos parece brilhar. Algumas horas antes, na loja onde compra quase toda a roupa, provou o fato especial para a ocasião. E antes tinha passado pela Louis Vuitton para comprar uns sapatos de mil dólares. Não tinham o tamanho 42.
Os pratos vão desfilando pelas mesas e causando espanto. Há atuações musicais, leilões de beneficência, discursos. Uma pessoa de cada mesa levanta-se e diz o que pensa de Carlos Ferreira: «James Bond de Montreal», «um ser humano de exceção, «o homem que apresentou Portugal aos canadianos», «o verdadeiro embaixador».
Na tarde do dia seguinte, faz o balanço: «Foi uma noite muito importante para mim e para a causa. Foi a prova real de que o que faço é bem feito. As pessoas retribuem de uma maneira generosa e são cativadas. É um fenómeno com um sucesso enorme e a prova está aí. Podemos expor bem a nossa cultura e facilmente as pessoas aderem. É um erro os emigrantes não ousarem expor-se quando têm possibilidade para isso. É um progresso na imagem do país.» E sorri, satisfeito, enquanto conduz o Porsche Carrera 911 de capota aberta. «Dou à sociedade aquilo que a sociedade me deu ao longo dos anos.»