O "senhor Alfredo" chega à ternura dos 90. "Tem sido um grande caminho", diz Carlos Brito

Assume-se como alguém "feliz", que fez "muito" e "aquilo que queria fazer". Em quase uma hora de conversa, na sua casa em Alcoutim, Carlos Brito recordou ao DN momentos da sua vida pessoal e das lutas que travou durante décadas no PCP.
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O carro fica estacionado junto ao cais que liga a pequena vila de Alcoutim a Espanha. O caminho é sempre a subir pela estrada de empedrado que entra pelo castelo adentro. A ocasião é especial: Carlos Brito, o anfitrião que nos recebe em sua casa, mesmo na encosta do castelo, faz no dia a seguir 90 anos [o aniversário foi dia 9]. É por isso homenageado este sábado na câmara local, às 15.00, inaugurando-se uma exposição fotobiográfica e fazendo também a pré-apresentação do seu novo livro, Estar Presente (a apresentação oficial acontece dia 15 de fevereiro, em Lisboa, na Associação 25 de Abril).

"É só abrir o portão, pode abrir", ouve-se depois de concluída a subida e das tentativas frustradas de tocar à campainha que não funcionava. Assim seja, entremos. Do lado de dentro do portão está Carlos Brito, histórico militante comunista, hoje afastado do partido, que nos recebe na sua terra (não nasceu, mas viveu grande parte da sua vida na vila raiana). "Onde quer conversar?", pergunta. Opta pelo escritório, com vista para o rio, onde ficamos rodeados pelas estantes. Há discos de interpretações de Mozart, fotografias, diplomas. Há livros, muitos livros. Nem todos, mas alguns sobre política. Ou não fosse Carlos Brito um homem político e ele próprio da política.

Sentamo-nos, o gravador está ligado. "Tem sido um grande caminho. Olhando para trás, valeu a pena. Fui feliz, fiz muito. Fiz aquilo que queria e que gostava de fazer", reflete, olhando para a idade redonda que atinge. Nasceu em 1933, em Moçambique, mas veio "com 3 ou 4 anos" para Alcoutim. "Era a terra da minha avó materna. Tinha aqui as suas raízes. Por várias circunstâncias, arrastou a minha mãe e viemos também", recorda. Desde cedo que a vida foi marcada pelo convívio com a luta política, ou não fosse o seu pai um "deportado político" em África por ter "participado na Revolução Republicana de 1927". Foi então preso, julgado e enviado para Lourenço Marques [atual Maputo], onde Carlos Brito viria a nascer.

Situada no interior algarvio, mesmo junto a Espanha, Alcoutim é uma vila pequena, com o Guadiana a servir de fronteira entre os dois países. Que memórias tem, então, da vida ali? Em primeiro lugar: o rio que "nunca mais acaba" e que, diz, "está permanente" nas recordações. "A pesca, a natação, o velejar, o remar. Dava imensa ocupação a um jovem". Depois, "toda a vida, que era uma grande felicidade". A família, conta de sorriso no rosto, era "remediada". Isto é: "Não somos ricos nem pobres, somos remediados" - o que lhe proporcionou, reconhece, "uma infância bastante feliz".

E para lá de Alcoutim? Primeiro, veio o curso. Contabilidade, no Instituto Comercial de Lisboa [o atual ISCAL, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa]. Depois, a profissão: "Sou contabilista. Exerci. Também gostava". Pelo meio, havia outra paixão já assumida e transversal: a poesia. "Comecei a escrever os meus poemazinhos aí com 15 anos. Enviei a uns amigos e umas amigas e pronto", resume, rindo-se. A escrita mantém-se até aos dias de hoje. Estar Presente, o livro pré-apresentado na cerimónia de homenagem, é exemplo disso. Classifica-o como "um conjunto de reflexões" feitas à beira do Guadiana, "na varanda" de sua casa.

A poesia foi, aliás, a porta de entrada na outra grande dimensão da vida de Carlos Brito: a militância política e partidária. "Fui puxado por um grupo de jovens que escreviam, até tínhamos ali um conjunto que colaborava com jornais da província", recorda. Mas a política esteve sempre à espreita: "Desde que me lembro que era contra o governo da ditadura. Primeiro, pelo meu pai, e depois pela minha mãe, que também era militante republicana. Tinha uma propensão própria para entrar na política." Com mais um sorriso no rosto, Carlos Brito recorda que foi, portanto, "um entusiasmo" quando começou a contactar com jovens ligados ao associativismo. "Foi a coisa mais natural deste mundo" tornar-se "um militante profundamente devotado à causa do mundo juvenil", diz.

Estava assim estabelecida a ligação àquilo a que chama o "MUDJ", a juventude do Movimento de Unidade Democrática (MUD). "Tinha já bastante influência nas escolas. Foi um encontro felicíssimo", recorda.

Com a entrada no MUDJ, recorda Carlos Brito, "as tarefas começaram a ser de maior responsabilidade". Tanto é que uma das sedes que o MUDJ abriu, "por altura de uma mascarada eleitoral", foi alugada por si, com um nome falso - Alfredo.

"A escritora Maria Lamas estava a escrever um livro chamado A Mulher no Mundo [publicado em 1952], e visitou vários países, incluindo a União Soviética", o que, recorda, lhe valia uma pena de prisão assim que aterrasse em Portugal. Isso levou os militantes do MUDJ ao aeroporto... mas o avião atrasa-se e, então, a PIDE aproveita e "leva aí umas 50 pessoas para Caxias". Na cadeia, é interrogado e "aí a PIDE diz: com que então você é que é o senhor Alfredo!". Ri-se e recorda: "Fiquei lá mais uns dias do que os outros à conta disso. Entrei em dezembro [de 1953] e saí só em fevereiro, um dia depois dos meus anos".

Seria a primeira de três vezes a estar preso: seguiu-se o Aljube (em outubro de 1956), de onde conseguiu fugir - algo que recorda com entusiasmo. Quando foi preso no Aljube, já pertencia aos quadros do PCP - onde entrou a convite do escultor José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 1961. "Foi uma fuga um bocadinho arriscada", classifica. Porquê? "Saímos [Carlos Brito e mais dois reclusos] do último andar do Aljube, que é bastante alto, serrámos a grade e depois passámos por um algeroz. Caminhámos ao longo dele e depois descemos por uma corda feita de lençóis para o telhado do prédio vizinho", que atravessaram e onde havia "um andar com águas furtadas" para alugar, que acabou por servir de abrigo aos fugitivos, que estavam "descalços", com os sapatos presos "assim na zona do cinto" e o casaco ao ombro - algo que até ajudou no final da fuga, que foi feita "por cima da sentinela". "Quando saímos para a rua, pensavam que éramos três jovens boémios madrugadores a caminhar", conta.

Depois da fuga do Aljube, vai para a clandestinidade "porque o partido assim entendeu". Volta à cadeia, desta vez em Peniche, em 1959, onde ficou até 1966.

Olhando novamente pela janela, para o rio, a conversa segue para tempos mais recentes: o pós-25 de Abril. As perguntas que estavam pensadas acabam por não ser feitas e a conversa acaba por correr naturalmente. Começamos no Período Revolucionário em Curso (PREC), altura que Carlos Brito recorda como "um período muito complexo". "Tinha de se ser muito rigoroso nas orientações. Existiam os militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) e, do outro lado, estava o [General] António de Spínola", que apoiou os militares do MFA, mas tinha "as suas ideias", o que levou a um choque com os militares, a que se seguiu depois "uma rutura dentro do próprio MFA". "Era uma altura mesmo muito complexa", resume Carlos Brito.

Isto enquanto, em simultâneo, decorriam os trabalhos da Assembleia Constituinte - da qual o ex-militante do PCP fez parte. Seria depois sempre eleito para a Assembleia da República até à V Legislatura, em 1987. Como foi essa altura? "É extraordinário como se fez a Constituição. O país está numa enorme turbulência e os deputados fazem o seu trabalho", o que, diz, "levou a uma grande incompreensão quer à esquerda, quer à direita" sobre o processo de construção da Lei Fundamental. Entre os céticos estava Álvaro Cunhal. "Nunca acreditou que com aquela composição da Constituinte [sem maioria, PS era o partido mais votado] se fizesse uma Constituição de jeito", ri-se. Olha pela janela e depois recorda: "É quase na véspera da aprovação que ele lê o texto e fica completamente apaixonado pela Constituição. Toda a gente nas várias bancadas tinha um sentido patriótico."

Homem de esquerda convicto, Carlos Brito entra em rota de colisão com o PCP em 2002, quando é suspenso por um ano pela direção comunista - terminado esse período, ele próprio manteve essa suspensão.

O motivo, recorda já perto do final da conversa, foi a dificuldade que o partido mostrava em "renovar" os seus ideais e as suas políticas e o "clima de suspeição" que se viva dentro dos órgãos sociais comunistas. Isso leva-o a fundar, com outros antigos militantes do PCP, a Associação Renovação Comunista, apesar de "ter uma identificação profunda" com o partido, uma vez que passou praticamente toda a vida ligada aos comunistas.

Mas o afastamento da vida no PCP não significou necessariamente a perda de sentido e dever cívico. Desde que vive em Alcoutim, Carlos Brito tem colaborado com as instituições locais ("Há até um bairro com o meu nome!") e foi, inclusive, membro da Assembleia Municipal. Atualmente, com 90 anos, a vida é mais calma... mas nem por isso menos dedicada às reivindicações e às causas do povo local, como a ponte que irá ligar a vila a Espanha e que é pedida pelos alcoutenejos "há muitos anos". "É uma das minhas grandes causas e das grandes lutas. Esta gente merece a ponte", considera.

No final, fica a questão: com duas condecorações da Presidência da República (atribuídas em 1997 e 2004) e também da autarquia de Alcoutim, o que significa mais esta homenagem? Carlos Brito sorri. Responde depois: "Toca-me muito. Todas estas homenagens são muito gratificantes, até pela profunda ligação que tenho às gentes desta terra. Não podia ser mais cativante."

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