"O segredo do fado é a autenticidade"

Boas notícias para os amantes e para os não iniciados: passam a dispor, a partir de agora, d" "O Manual do Coração". Em 15 aulas práticas, o fado estende fronteiras, sem deixar de encantar e comover. O protagonista conta as histórias, deste e de outros capítulos.
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Respeito e risco. São palavras que Hélder Moutinho há de utilizar, com rigor e sem medo. Ele que, recentemente, abandonou o Quinteto Lisboa, de que foi fundador, "por falta de tempo e para não prejudicar os meus parceiros". Ele que não distingue entre casas de Fado e grandes salas, desde que quem está presente queira realmente ouvi-lo. Vamos a isso.

A pergunta é feita ao fadista, mas também ao homem que ajuda outros nas respetivas carreiras: há alguma regra para quem se inicia?

Regras, não sei, mas há etapas... Na minha opinião, os primeiros discos devem ser, acima de tudo, abordagens ao que já existe. É no que já foi feito e que ganha uma outra abordagem, uma nova voz, que cada um pode e deve começar a descobrir a sua identidade. Da mesma forma, parece-me indispensável o "estágio" numa casa de fados, aquela coisa de cantar todos os dias... A casa de fados é uma aprendizagem, quase um curso - está-se com os mais velhos e são eles que podem dar conselhos. Hoje, isso tornou-se mais difícil porque há casas que só apresentam miúdas e miúdos. Eu tive sorte: era o mais novo, com dez anos de diferença do seguinte, e tornei-me uma espécie de mascote... Toda a gente me "pegava ao colo" e me dizia qualquer coisa para me ajudar...

Percebo, portanto, que não é adepto da ideia que defende que a presença numa casa de fados estraga um fadista?

Não, nada disso. Faz falta é uma personalidade forte para apreender, assimilar os conselhos e, depois, assumir a decisão final sobre o que se adota ou não. Quando comecei, o José Maria Nóbrega, viola de fado que tocou muitos anos com o Carlos do Carmo, disse-me para ouvir tudo, para comprar todos os discos de fado, velhos e novos, que pudesse, para depois escolher de acordo com o gosto. Eu tentei e não me dei mal... Um outro fadista veterano, António Rocha, explicou-me que, muitas vezes, o problema não está neste ou naquele exagero que se faça a cantar - o segredo está na autenticidade com que isso se faz, de forma a nunca por nunca soar artificial, de plástico. Essas pequenas orientações são uma aprendizagem ímpar...

No seu caso, sente que cumpriu todas as etapas?

Eu penso que sim. No meu primeiro disco, só tive dois ou três originais. No segundo, fui mais para outro tipo de desafios, ao aplicar letras novas a fados que já existiam... Aí está algo que se pratica mais no fado do que noutros géneros musicais... Talvez nos blues aconteça algo de semelhante. Mas no fado isso é um desafio muito significativo: pegar em algo que nos foi dado de mão beijada e, com todo o respeito, partir para algo diferente... E isso vem de muito longe, se pensarmos, por exemplo, que o Fado Vitória, que é o Igreja de Santo Estêvão, também é o Povo Que Lavas no Rio, partilham a mesma música...

Deixe-me fazer de advogado do diabo: assim não se corre o risco de o fado se transformar numa pescadinha de rabo na boca?

É um risco, mas, por isso mesmo, os antigos decidiram alargar o leque das disponibilidades. Hoje, talvez haja mais de 500 fados tradicionais! Os compositores da primeira metade do século XX estavam atentos e foram exímios na construção de uma obra, que nos deixaram, e que não se esgota. E isso nada tem que ver com o purismo, se nos lembrarmos que até o Alfredo Marceneiro fez muitas variações na estrutura dos fados e que a Amália chegou a ser contestada quando abordou os versos dos grandes poetas... Dizia-se que já não era fado, que era canção!... E isto com o Marceneiro e com a Amália, que são dois expoentes do fado. Depois, há uma outra questão: o fado chegou a ser identificado com a ditadura, porque esta o absorveu. Mas, muito antes disso, o fado era uma música de intervenção. O que levou os fadistas a rejeitar tudo o que se chegasse mais ao nacional-cançonetismo, quando o fado já não dava para contar histórias...

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