O secretário-geral no labirinto da burocracia
Sutton Place, em Manhattan, é um luxo de 14 mil metros quadrados doado pela filha do magnata J.P. Morgan, Anne, às Nações Unidas. Residência oficial do secretário-geral da ONU desde 1972, é uma casa que António Guterres trocava de bom grado pelo conforto do lar em Lisboa ou pelo pequeno apartamento em que viveu em Genebra durante a década em que desempenhou as funções de alto-comissário das Nações Unidas para os refugiados. Assim o deu a entender na entrevista a Ana Sousa Dias, publicada há um ano na Notícias Magazine.
Residir sozinho num palácio é um pequeno preço a pagar por quem está à frente dos destinos do secretariado-geral da ONU, o mastodonte burocrático que emprega mais de 40 mil funcionários em dezenas de agências e escritórios em todos os continentes. Assim como é lógico que certas alas estejam encerradas para o português não se perder nos corredores do casarão, mas sobretudo por racionalidade pura, é natural a aplicação do mesmo princípio à estrutura que comanda e que deseja reformar.
"Os problemas piores são a burocracia, não deixarem fazer aquilo que a gente quer, esses são os que mais incomodam", disse à revista do DN e do JN. Na cama da residência oficial ou de algum hotel - realizou 52 viagens de trabalho em 12 meses - Guterres tem perdido o sono para a burocracia. Foi o que o próprio disse, num encontro sobre a reforma das Nações Unidas, em setembro. "Estruturas fragmentadas, procedimentos bizantinos e regulamentos intermináveis. Alguém com o objetivo de prejudicar a ONU não teria conseguido encontrar melhor forma do que impor algumas das regras que nós próprios criámos", criticou, na presença do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
O maior contribuinte para o orçamento da ONU pressionou para que o orçamento do biénio 2018--2019, aprovado há dias, tenha um corte superior ao que o próprio secretário-geral preconizava: 285 milhões de dólares em relação ao biénio anterior, cerca de 5%. Já em junho, o orçamento para as operações de manutenção da paz (que envolvem 110 mil pessoas em 16 países) sofrera um corte de 600 milhões de dólares em relação aos oito mil milhões do ano anterior. Também aqui Washington, através da embaixadora nas Nações Unidas, Nikki Haley, teve papel determinante.
Na apresentação do documento sobre a reforma da ONU, o secretário-geral contou com o apoio de 128 países (em 193). Guterres destacou um outro aspeto essencial: as reformas no sistema de desenvolvimento da ONU são também para ajudar os países nos 17 objetivos da agenda de desenvolvimento sustentável - a chamada Agenda 2030, que tem como fim último tirar 767 milhões de pessoas da extrema pobreza nos próximos anos.
"Temos de separar as reformas ou desenvolvimentos dentro da organização que são da competência do secretário-geral e creio que aí tem mostrado ideias e capacidade para pô-las em prática", comenta o diplomata António Monteiro. O antigo embaixador de Portugal nas Nações Unidas sublinha quatro medidas. A primeira é a política respeitante à exploração sexual, quer a de assédio no local de trabalho quer a praticada no âmbito das operações internacionais das Nações Unidas. "O secretário-geral enfrentou o problema e procura encontrar remédios para isso e inclusivamente procurou dar proteção àqueles que denunciam os casos." Outro ponto a salientar: "Colocou em prática um roteiro para a paridade do género. Havia a ideia de que as Nações Unidas necessitariam de uma mulher à sua frente e o que se disse é que precisa de alguém competente, que trabalhe e oriente a organização para uma maior igualdade, para a paridade. É o que se está a fazer e ficou provado que foi fundamental ter sido privilegiado o mérito." O processo de nomeação e recondução para os cargos de topo, feito pelo próprio, comprova as palavras do diplomata: o saldo de 69 nomeações trouxe mais 13 mulheres. E a mudança não terá sido maior porque parte dos cargos são de natureza militar, uma área onde as mulheres estão em minoria.
"Uma medida extremamente importante" foi a criação de um departamento de contraterrorismo, "juntando departamentos dispersos, e pondo à sua frente um subsecretário-geral", o russo Vladimir Voronkov, "no sentido de unir esforços da comunidade internacional para um mundo com um futuro mais seguro". Por fim, recordando a falta de coordenação entre agências que testemunhou enquanto trabalhou em Nova Iorque, releva a criação de um comité executivo, "que é, no fundo, a reunião semanal com secretários-gerais adjuntos e chefes de agências, de maneira a garantir um foco na organização do trabalho".
Significa então que António Guterres revolucionou as Nações Unidas em apenas 12 meses? Nem por isso, nem tal seria possível. "Um secretário-geral tem muito pouca capacidade de manobra real. Tenho de obter o consenso para algumas transformações que parecem evidentes mas que no entanto geram controvérsia, ou têm gerado grandes controvérsias. Há aqui um tempo que é indispensável para tentar fazer que as coisas melhorem. É preciso convencer muita gente, superar muitas contradições, vencer muitos obstáculos", afirmou Guterres na entrevista à Notícias Magazine.
"As Nações Unidas estão cheias de fracassos" - aponta António Monteiro - "mas não deve ser por esse prisma que devemos ver. As reformas a que o secretário-geral ainda não conseguiu dar o suficiente impulso dependem sobretudo da vontade dos Estados membros. É o caso das medidas relativas ao desenvolvimento: quando defende que se deve gastar mais no terreno e menos em burocracia mexe com interesses estabelecidos. E já nem falo da reforma do Conselho de Segurança, na qual os Estados membros têm a faca e o queijo na mão".
Em conclusão, para o embaixador António Monteiro, Guterres teve "uma atuação positiva, com uma presença tranquila mas oportuna, uma voz independente que procura refletir os interesses globais da organização".
Em setembro, António Guterres apresentou na Assembleia Geral das Nações Unidas as ameaças e desafios que o mundo tem de vencer. São eles o perigo nuclear, o terrorismo, os conflitos armados e a violação dos direitos humanos, as alterações climáticas, o aprofundar das desigualdades sociais, o ciberterrorismo e a crise de refugiados, "que é também uma crise de solidariedade".