O sacramento do amor

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"Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como o bronze que ressoa ou como o címbalo que tine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que possua a fé em plenitude, a ponto de mover montanhas, se não tiver amor, nada sou. O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, não procura o seu interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. O amor nunca acabará." Esta é uma breve citação do hino célebre ao amor, de São Paulo aos Coríntios.

Este amor corresponde à única tentativa de definir Deus no Novo Testamento: "Deus é amor", escreveu São João. Na companhia de Jesus, os discípulos perceberam que a essência de Deus é amar, e foi esse Evangelho que eles foram anunciar, dando dele testemunho até à morte. Foi essa notícia boa e inaudita que levou à conversão.

Um ano depois da publicação da sua primeira Encíclica Deus é amor, Bento XVI publicou, com a data de 22 de Fevereiro, uma Exortação Apostólica sobre a Eucaristia enquanto "sacramento do amor", que deveria ser eco da XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que decorreu em Outubro de 2005 no Vaticano.

O Papa começa por afirmar que no sacramento da Eucaristia "Jesus mostra-nos de modo particular a verdade do amor, que é a própria essência de Deus. Esta é a verdade evangélica que interessa a todo o homem e ao homem todo. Por isso, a Igreja, que encontra na Eucaristia o seu centro vital, esforça-se constantemente por anunciar a todos, em tempo propício e fora dele, que Deus é amor".

Desta afirmação de base Bento XVI tira conclusões, umas mais referentes à celebração litúrgica e outras às suas consequências sociais e até ecológicas.

Se na Eucaristia se celebra o amor de Deus revelado em Cristo até à morte, ela tem de ter consequências no compromisso em prol da justiça e da paz, obrigando à transformação das estruturas injustas, pois não se pode ficar inactivo "perante certos processos de globalização que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem dilapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao céu". A oferta do pão e do vinho impele-nos a considerar a terra como criação de Deus e a atender às "justas preocupações" suscitadas pela ecologia.

Quanto à celebração, faz-se um necessário apelo à beleza. Mas é preciso perguntar: ao contrário do que pede a Exortação, não haverá coisas mais importantes para os futuros padres do que a preparação, "desde o seminário, para compreender e celebrar a Santa Missa em latim, bem como usar textos latinos e entoar o canto gregoriano"?

Ao restringir a presidência da celebração da Missa aos padres celibatários, a Exortação faz com que comunidades inteiras de cristãos fiquem sem Eucaristia.

Depois, por um lado, insiste-se justamente em que a Eucaristia é nuclear na vida cristã, mas, por outro, impede-se a comunhão aos católicos divorciados e recasados, a não ser que sigam o encorajamento da Igreja no sentido de se esforçarem por "viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã". Será compatível com a celebração do amor convidar para o banquete eucarístico aqueles a quem se nega a comunhão? E não implicaria o amor a hospitalidade eucarística, isto é, acolher na comunhão os cristãos de outras confissões cristãs não católicas? Aliás, neste domínio, é um gesto pouco ecuménico voltar às indulgências, mesmo no quadro de "uma prática equilibrada e conscienciosa".

Não há dúvida de que o culto agradável a Deus tem de ter consequências sociais: "Requer o testemunho público da própria fé." Daí o apelo a todos os cristãos e particularmente "a quantos, pela posição social e política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais". Entre estes valores, a Exortação enumera "o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas". São "valores não negociáveis", devendo os políticos católicos "apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana".

Aqui, permita-se mais uma observação: neste domínio da moral em geral e da moral sexual em particular, a questão é que a Igreja também não pode esquecer que a natureza humana não é fixa e imóvel, mas histórica, e que há o lugar da autonomia.

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