O russo Zvyagintsev reafirma a sua desencantada visão realista
De uma maneira ou de outra, a 70.ª edição do Festival de Cannes vai ficar marcada por dois temas de estranha perturbação. O primeiro tem que ver com a participação de duas produções da Netflix (do americano Noah Baumbach e do sul--coreano Bong Joon Ho) na secção competitiva. E a pergunta que circula é esta: que sentido faz programar filmes que não vão passar nas salas de cinema? O segundo excede o campo específico dos filmes e, em boa verdade, decorre da conjuntura geopolítica: as medidas de segurança nas entradas para as salas são mais apertadas do que nunca.
Na quinta-feira de manhã, os jornalistas que foram ver o novo filme do americano Todd Haynes, Wonderstruck (na primeira projeção de imprensa no Grande Auditório Lumière), começaram por passar por um detetor de metais, sendo depois revistados individualmente, convidados a colocar num tabuleiro os objetos que levavam nos bolsos e a abrir os seus sacos - tudo isto ainda na rua, na zona que dá acesso à escadaria principal. Depois, na porta de entrada, repete-se o mesmo ritual, incluindo leitura eletrónica do código de barras dos cartões de identificação de participantes no certame. Por fim, o porteiro de cada zona da sala solicita nova amostragem do cartão. O rigor de todo este processo faz ainda que, até mesmo já no interior no Palácio, os jornalistas sejam de novo identificados quando acedem ao "Terrasse de Presse".
Ironicamente ou não, o filme de Haynes distinguiu-se pela sua sensibilidade "antiga", por assim dizer fora do tempo. Dir-se-ia uma fábula produzida por Hollywood nos anos 30/40, centrada na odisseia de duas crianças marcadas pela surdez e que, à distância de 50 anos, vão viver odisseias que, em última instância, revelam um destino comum. Baseado num livro de Brian Selznick (autor de A Invenção de Hugo, adaptado em 2011 por Martin Scorsese), com uma Julianne Moore dramaticamente envelhecida para interpretar uma das personagens centrais, o filme de Haynes terá sido visto como um projeto muito menos arriscado do que outros títulos da sua filmografia (incluindo Carol, revelado na edição de 2015 de Cannes). Seja como for, há nele esse gosto primitivo da fábula que o demarca de muitas produções correntes dos grandes estúdios.
Realismo russo
Francamente diferente (para melhor...) é Nelyubov, novo trabalho do russo Andrey Zvyagintsev, três anos passados sobre Leviatã, apresentado em Cannes 2014 (onde arrebatou o prémio de argumento). Identificado em francês e inglês, respetivamente, como Faute d"Amour e Loveless, esta é, de facto, uma história "sem amor", centrada num rapaz de 12 anos que, face ao agitado processo de divórcio dos pais, desaparece de casa.
Pode dizer-se que mais de metade da narrativa se centra na procura do desaparecido, numa lógica de crescente inquietação. Em todo o caso, não estamos perante um vulgar dispositivo policial. Vamos observando as convulsões internas de uma "classe média" russa em que o jogo de aparências - por exemplo, no emprego do pai, em que a visibilidade de um divórcio pode, no limite, implicar um despedimento - contamina todas as relações entre os adultos, no limite contaminando as elaboradas cenas sexuais com um misto de angústia e falsidade.
O mínimo que se pode dizer da desencantada visão de Zvyagintsev, pontuada por algumas discretas e amargas referências à situação na Ucrânia, é que relança o gosto realista da sua obra. Para tal visão, o trabalho dos atores continua a ser determinante, a começar pelo magnífico Matvey Novikov, intérprete do rapaz em fuga. De qualquer modo, é a notável Maryan Spivak que se distingue no papel da mãe - apesar de ser muito cedo para especulações, não será surpreendente que ela surge na linha da frente das candidatas ao prémio de melhor interpretação feminina.
Em Cannes