O road book dos Coliseus de Zambujo e Miguel Araújo
As duas imagens iniciais explicam logo o que o autor, Tito Couto, quer com este livro: aproximar António Zambujo e Miguel Araújo até junto dos que foram ouvir a dupla aos palcos de muitas e muitas noites nos Coliseus. Por isso, metaforicamente, os cantores aparecem numa primeira imagem distantes e na segunda muito mais próximos. Aliás, o trabalho de reportagem fotográfica que Paulo Bico deixa registado nas restantes duzentas páginas deste volume ajuda muito a compreender-se os bastidores do maior fenómeno em número de espetáculos que já alguma vez aconteceu no nosso país, mesmo que se repita em cada capítulo a imagem de capa.
Na introdução, o autor confessa que apreciou o modo como esta recolha de bastidores e de reações em 28 salas cheias decorreu, mesmo que "para muita pena" sua não existissem episódios próprios que uma digressão nacional faria sonhar: "Não há excentricidades, não há drogas ou orgias nestas páginas."
É claro que esta digressão nacional foi apenas em duas cidades, ou seja, inverteu-se o destino dos cantores/músicos, que seria o de percorrer o país e, em vez dessa situação, os que os desejavam ouvir foram a Lisboa e ao Porto para o fazer. Só o relato dessa inversão já merecia um livro, diga-se.
E aí entra um pormenor narrativo que interessa sobremaneira a este livro: a quem pertence a ideia de fazer os Coliseus? Como numa disputa entre os fãs de Lennon e McCartney sobre quem escreveu Helter Skelter no Álbum Branco, que tem a carinha de John mas é da autoria e voz de Paul, a página 18 é ocupada a questionar essa paternidade. Foi Miguel a sugerir um concerto acústico? Foi António que disse qualquer coisa fundamental? Não, parece que foi Ana Sequeira que implodiu.
Ninguém chega a acordo sobre como nasceu a ideia, mas também não importa assim tanto. Certo é que a intenção de avançar para as duas salas ficou logo fixada nas cabeças dos que participaram no almoço em que tudo nasceu. Pelo menos isto parece concreto, ficando só a faltar após a almoçarada a definição do conceito. "Só com dois músicos e as suas guitarras?" Impensável, mas a venda de bilhetes mostrou o contrário.
Como é que Tito Couto explica esta parceria um pouco improvável? Com esta frase: "Nasceram com três anos de diferença, com 450 quilómetros a separá-los e num contexto e aprendizagem musicais muito diferentes. Encontraram-se num bar e imediatamente descobriram que eram mais as coisas que os uniam do que aquelas que os separavam. Mais do que uma parceria musical, na composição e interpretação, tinha nascido uma amizade e uma cumplicidade, que partem da música mas estendem-se muito para lá disso."
Chega de citação, afinal, este livro intitulado Algo Estranho Acontece merece uma boa leitura para se compreender o que está a acontecer na música popular portuguesa. Há algum didatismo quando se revê a carreira de António e Miguel, que é uma parte interessante para se perceber o percurso dos músicos que atraíram tantos milhares a um espetáculo minimalista, em que a relação imposta entre a audiência e os intérpretes é baseada no afeto que as letras das canções - e o modo de as cantar - provocam no ouvinte. Ou como foi pensado o cenário, a iluminação, o som, tudo isto com a descrição das rotinas das vidas dos cantores fora dos locais de apresentação, bem como nos camarins. Tal como o alinhamento dos espetáculos, quase nunca cumprido, mas que começa normalmente pelo tema de Amália Foi Deus, do longínquo ano de 1952. Depois, a troca de canções de cada um interpretadas pelo outro. O road book termina com o título mais sincero do que foi esta conjugação musical: "Eu vivia tudo novamente." O sentimento que está mais presente.
Algo Estranho Acontece
Tito Couto
Editora Objectiva
204 páginas
PVP: 14,90 euro