O rinoceronte português
A arte é uma incompreensível força de comunicação entre o divino e o humano, uma força que enobrece o homem através dos sentidos, o recupera, tornando o seu maior ou menor esforço de vida, e muitas vezes a dor, mais suportável; acrescentando à própria vida um ímpeto suplementar através de uma experiência estética e uma mensagem humanista.
Afinal, quem pode ficar indiferente à voz de Maria Callas ou a uma execução de Menihin do concerto para violino de Beethoven; quem pode passar indiferente pelas pinturas de Leonardo da Vinci, Rembrandt, Rafael, Vermeer, Dürer; ao lado das estátuas de Fídias, de Praxíteles, Pisana ou Michelangelo? É essa magia inexplicável de Divini et humani comunicatio.
No entanto, um dos maiores milagres da história do poder da arte está relacionado com Portugal.
A saber, o Vice-Rei da Índia portuguesa, Afonso de Albuquerque, recebeu um rinoceronte domesticado, assim como o seu tratador, numa troca de presentes diplomáticos com o Sultão de Cambaia (Gujarat) Muzaffar Shah II. O Vice-Rei decidiu remeter o presente ao seu rei, D. Manuel I, enviando-o a bordo do Nossa Senhora da Ajuda de Goa para Lisboa. Depois de uma viagem de 120 dias, do Índico ao Atlântico, em Maio de 1515, o rinoceronte foi descarregado próximo da Torre de Belém, então em construção; razão pela qual esta foi posteriormente decorada com cabeças de rinoceronte na fachada oeste. A chegada deste animal a Lisboa foi uma verdadeira sensação, pois não era visto na Europa desde os tempos do Império Romano.
Apenas 18 anos antes do rinoceronte chegar a Lisboa, Vasco da Gama havia descoberto a rota marítima para a Índia. Era desejo de D. Manuel I que o Papa Leão X mantivesse as concessões e privilégios que lhe havia outorgado, os quais permitiam a Portugal manter as novas descobertas e conquistas no Extremo Oriente, retribuindo-os com amabilidades e gentilezas. Como o Papa havia apreciado muito o elefante branco que o monarca português lhe oferecera anteriormente, D. Manuel I decidiu dar-lhe a oferta que recebera do Sultão de Cambaia. Assim, em Dezembro de 1515, o rinoceronte foi cerimoniosamente decorado com veludo verde e flores para ser enviado, juntamente com outros presentes, de navio até Roma. O navio estava perto de Marselha, em Janeiro de 1516, quando o rei Francisco I da França manifestou o desejo de o ver, o qual foi realizado a 24 de Janeiro, após o que a viagem para Roma prosseguiu.
No entanto, a cerca de 300 quilómetros de Roma, perto de Portovenere (antigo Portus Veneris), uma tempestade repentina, provavelmente no estreito entre o porto e a ilha de Palmeria, danificou gravemente o navio, que naufragou, levando consigo o exclusivo presente do rei português. Por consequência, o esboço de Lisboa passou a ser a única evidência do presença do rinoceronte, a partir da qual Albrecht Dürer fez a sua célebre obra. Esta não reflecte totalmente a realidade, pois o seu rinoceronte possui várias protuberâncias no corpo que não existem na natureza e outras incongruências anatómicas, mas constituiu uma fonte de inspiração para artistas, servindo como modelo por centenas de anos, integrando até a literatura científica e técnica, tendo permanecido nos livros escolares alemães até à década de 1930, mais de 400 anos após a morte do artista. Salvador Dali, um dos mais brilhantes artistas do modernismo, estava fascinado pela história do rinoceronte português quando imortalizou Dürer. Para tornar o caso ainda mais interessante, Dali assistiu à produção da xilogravura de Dürer ainda criança, em casa dos seus pais, e a par da sua obsessão por Da Vinci e Vermeer incluía-se o seu fascínio pelo rinoceronte de Dürer, razão pela qual este animal se encontra em muitas das suas obras. Dürer, que nunca vira um rinoceronte, inspirado no esboço de Lisboa, que por sua vez se afastava significativamente da realidade, encantou Dali com a sua perfeição artística, de modo que ele próprio, a exemplo de Dürer, fez numerosas pinturas e esculturas deste animal.
O rinoceronte português dá, portanto, testemunho da magia da estética artística, que com as suas proporções harmoniosas cria e desenvolve um sentido de equilíbrio natural das coisas, mesmo quando tal perfeição não existe na realidade, sendo capaz de transformar a ficção, pelo menos temporariamente, em realidade.
Hoje, em todo o mundo, através da TV e das redes sociais, assistimos constantemente a vários tipos de terríveis atrocidades e catástrofes, ambiente este que, conforme advertia Cícero, mesmo naqueles de natureza mais branda, devido à constante recorrência de acontecimentos dolorosos, faz com que o sentimento de humanidade se vá esvaindo das nossas almas. O potente e agudo chifre do rinoceronte português e a mensagem transmitida pela obra de Dürer e de Dalí inspiram reflexões mais profundas sobre a necessidade urgente de um maior investimento em todas as formas de arte, porque é este um caminho seguro para enobrecer e humanizar a alma. O misterioso poder da arte como que equilibra a civilização espiritual com o crescimento desproporcional da útil, embora desumanizante, civilização técnica.
Embaixador da Sérvia