O regresso do western ao realismo das paisagens naturais

É o filme que está na linha da frente para os Óscares: protagonizado por Leonardo DiCaprio, <em>O Renascido</em> propõe uma revisão crítica da odisseia do Oeste americano. Chega hoje às salas de cinema nacionais
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Será desta que Leonardo DiCaprio vai ganhar um Óscar? A pergunta, misto de especulação e esperança, circula por todas as zonas do mapa cinéfilo e, a acreditar nos analistas de Hollywood especializados em sopesar os prós e contras das estatuetas douradas, desembocará num desenlace feliz: a interpretação de Hugh Glass (c. 1780-1833), lendário explorador e caçador dos estados americanos por onde passa o rio Missouri (Montana, Dakota do Norte, etc.), valerá ao ator a consagração dos seus pares.

Ainda assim, mesmo na máxima admiração pelo trabalho e carreira de DiCaprio, convém não simplificar: o filme em que interpreta Glass - The Revenant: O Renascido (estreia-se hoje) - impõe-se como uma invulgar experiência cinematográfica que transcende, e muito, as singularidades de qualquer performance individual. Dir-se-ia que para o realizador Alejandro González Iñárritu um dos fundamentais princípios de trabalho continua a ser a construção de cada filme como uma experimentação dos limites, um desafio que envolve tanto a estrutura narrativa quanto a própria experiência física de rodagem.

No ano passado, com Birdman, Iñárritu conseguiu um reconhecimento invulgar: a alucinante viagem pelos bastidores da Broadway, combinando "em continuidade" realismo e onirismo, arrebatou quatro Óscares, três deles para Iñárritu, na qualidade de coprodutor (melhor filme), coargumentista (argumento original) e realizador. Agora, O Renascido está na linha da frente para a cerimónia que terá lugar a 28 de fevereiro, com nada mais nada menos do que 12 nomeações, incluindo de novo as de melhor filme e melhor realizador, além das de DiCaprio (ator) e Tom Hardy (ator secundário).

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A natureza contra o digital

A adaptação do livro de Michael Punke sobre a odisseia de Glass (editado entre nós pela Marcador) podia ter sido resolvida através dos mais modernos recursos digitais. Tratava-se, afinal, de filmar as arriscadas cenas de ação com os atores em estúdio, integrando na imagem os cenários naturais através dos artifícios do chroma (o ecrã verde, também usado nos estúdios de televisão, que permite inserir as imagens de qualquer paisagem). Mas, desde o início, para Iñárritu, tal opção estava posta de parte: era preciso que os vales e montanhas, com neve (muita neve!...), fossem vistos e sentidos pelo espectador como um contexto visceralmente realista. Como se se tratasse de repetir a história: depois de ter posto à prova a capacidade de sobrevivência das personagens da primeira metade do século XIX, as paisagens naturais seriam, agora, um desafio para atores e técnicos.

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Nas entrevistas que têm dado, tanto Iñárritu como elementos da sua equipa insistem em explicar as dificuldades resultantes das condições atmosféricas que foi preciso enfrentar, em particular as baixíssimas temperaturas.

Daí a importância extrema do contributo da direção fotográfica de Emmanuel Lubezki. Colaborador habitual de Iñárritu (ganhou um Óscar com Birdman e volta a estar nomeado), Lubezki aposta, aqui, numa depuração visual também ela alheia aos efeitos digitais: trata-se de filmar com a luz natural disponível, conferindo a O Renascido uma verdade material a que apetece chamar documental, já que os elementos da ficção emergem num clima de "reportagem" - é no confronto com a resistência do próprio território que os atores cumprem o desafio de inventar as suas personagens.

Uma revisão crítica do Oeste

Estamos, afinal, perante uma revisão crítica da expansão para Oeste. A desencantada descrição de um mundo sem heróis imaculados, marcado por formas de extrema violência entre grupos e indivíduos, faz recordar os chamados westerns críticos das décadas de 60-70, de que A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, poderá ser uma esclarecedora referência simbólica.

O negócio das peles de castor envolve, assim, três fatores fundamentais: a luta pela sobrevivência em regiões de difícil acesso; as relações tensas com os índios, eles próprios divididos em várias tribos (protagonizando diferentes conflitos ou cumplicidades com os brancos); enfim, uma frágil estrutura de poderes em que o lugar de cada um oscila entre as imposições da lei e o primitivismo de um combate mitológico com os elementos naturais.

Certamente não por acaso, a personagem de Hawk (Forrest Goodluck), nascido da relação de Glass com uma mulher índia, adquire um papel decisivo no desenvolvimento trágico do filme. Ele é, afinal, a expressão muito real de um mundo híbrido em que o esquematismo "branco-índio" dos westerns mais simplistas, pura e simplesmente, não existe. É por ele que Glass vai viver uma saga de sobrevivência cujo ponto de fuga simbólico se confunde com a procura de uma justiça humana que, no limite, poderá estar ligada a desígnios divinos.

Este é, de facto, um filme em que a crueza realista dos lugares coexiste com o pressentimento de que o brutal ciclo de vidas e mortes pode ser a expressão, também ela cruel, mas coerente, de uma outra ordem das coisas. No sistema simbólico de O Renascido, os enigmas dessa ordem, e as insólitas vias da sua justiça, pertencem ao domínio do sagrado.

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