O regresso às provas orais
Os grandes desafios para o mercado de trabalho
irão iniciar-se no Sistema de Ensino, onde se prepararão
os cidadãos do futuro para conviverem com estas novas ferramentas,
utilizando, de forma ética e racional, todas as suas potencialidades.
As adaptações que terão de ocorrer nas nossas escolas, em geral,
e nas nossas universidades, em particular, são enormes.
As ferramentas da Inteligência Artificial (IA) surgem da confluência de três áreas do conhecimento: matemática, com o desenvolvimento de novos algoritmos para explorar bases de dados complexas e de grande dimensão; eletrónica (física), no desenvolvimento de sensores e células cada vez mais inteligentes e redes de telecomunicações com cada vez maior largura de banda e capacidade de transmissão bidirecional; e informática, que constrói programas cada vez mais sofisticados para o tratamento automático de grande quantidade de informação.
As boas universidades organizam e desenham os seus cursos de data science, com a cooperação e a intervenção sistémica destes três departamentos, produzindo os novos machine learning engineers, com grande qualidade, versatilidade e capacidade de manuseamento destas ferramentas.
Estas novas ferramentas continuam a surgir diariamente, a um ritmo elevado, abrangendo as diversas áreas da sociedade.
Na indústria, assistimos à crescente implementação das tecnologias associadas à Indústria 4.0, que contemplam os sistemas ciberfísicos, incluem a robótica avançada, sensores sofisticados e inteligentes, cloud computing, fabricação digital com impressoras 3D e interfaces homem-máquina avançadas.
Estas novas tecnologias estão a promover uma mudança acelerada nas empresas, com novos métodos de trabalho e de conceção e produção de bens e serviços.
Estas novas fábricas completamente automatizadas poderão passar a ser dirigidas, à distância, por força da quase ausência de limites de capacidade da cloud computing e das redes de transmissão de dados, e com a utilização de sensores cada vez mais sofisticados e inteligentes.
Finalmente, as impressoras 3D permitirão a construção rápida de protótipos, com implicações ao nível da inovação radical e do marketing tecnológico, e os interfaces homem-máquina, otimizando a gestão de operações, aumentarão exponencialmente a produtividade destas organizações.
Assistimos, por outro lado, a uma alteração significativa em todas as funções de gestão, no âmbito das ferramentas de gestão global das empresas, por força dos algoritmos de tratamento de dados e de digitalização de processos. A capacidade de tratamento de grande quantidade de dados alterará os processos de análise de risco e de compliance das empresas, e o processo de digitalização traz-nos novas ferramentas de planeamento e controlo de gestão e alterações significativas no âmbito da logística e das operações, em particular nas unidades industriais.
A intervenção destas ferramentas na indústria afetará todos os setores económicos e sociais, em particular os que lidam com tecnologias de ponta, como é o caso da saúde. Onde assistiremos a robôs, controlados por computadores, a efetuarem cirurgias complexas, a novas ferramentas de diagnóstico pela melhoria da tecnologia de tratamento de imagem e à difusão mais rápida do conhecimento gerada pelas várias unidades de saúde de todo o mundo, face à disponibilização e tratamento de grandes volumes de informação.
O mesmo acontece em setores com grande utilização de curvas de distribuição estatística, em modelos previsionais, com utilização de grande quantidade de dados.
Na meteorologia assistiremos a previsões cada vez mais rigorosas, com implicações diretas positivas num conjunto de setores, como a construção civil, o turismo e as atividades desportivas e culturais.
A adoção generalizada de ferramentas de Inteligência Artificial vai colocar um conjunto alargado de questões éticas, nos vários domínios em que venham a aplicar-se.
A legislação associada à proteção de dados e à responsabilidade civil e criminal vai, certamente, ser reforçada para contemplar esta nova realidade.
Mas a regulação dos princípios éticos não se fará, em minha opinião, em relação às ferramentas em si, mas especificamente nos vários ambientes em que seja utilizada. E virá, certamente, com um atraso considerável, já que os sistemas regulatórios não têm, tradicionalmente, a velocidade dos sistemas de inovação científica e tecnológica.
As ferramentas, em si, são inócuas, não são boas ou más, a sua utilização é que pode ser antiética ou imoral, mas essa análise tem de ser feita a jusante.
No mundo académico, em que estas questões se vão colocar com grande acutilância, já que é o universo em que estamos a formar os cidadãos do futuro, alunos preguiçosos tenderão a utilizar, de uma forma constante, irresponsável, oportunista e desprovida de princípios éticos, estas ferramentas, nos seus trabalhos académicos.
E professores preguiçosos vão fingir que não sabem ou não percebem a utilização destas ferramentas, limitando o seu processo de avaliação à classificação destes trabalhos escritos. O antídoto para esta situação terá de passar por uma nova relação professor-aluno, que contemple uma avaliação em provas orais presenciais, com duração adequada para verificação da autenticidade dos conhecimentos anteriormente expostos nos trabalhos escritos.
A proibição de utilização destas ferramentas que, não tenhamos dúvidas, vieram para ficar, será completamente ineficaz. E contraproducente, já que impediria a sua utilização numa infinidade de processos éticos, úteis, sadios e construtivos.
As boas universidades tentarão encontrar processos que impeçam esta degradação do conhecimento adquirido, ajustando a relação professor-aluno a esta nova realidade.
O ChatGPT, por exemplo, não é ético ou antiético, é uma ferramenta fantástica para um conjunto de fins úteis e legítimos.
Mas pode, obviamente, ser utilizada de uma forma não ética e fraudulenta.
As ferramentas ligadas à Inteligência Artificial vão provocar uma grande alteração nos sistemas de conhecimento, tácito e explícito.
Vai verificar-se, em minha opinião, um aumento da variância no domínio dos vários conhecimentos, tácito e explícito, com um agravamento do gap entre os detentores do conhecimento, com grupos altamente preparados e grupos com índices de conhecimento muito reduzidos.
As implicações no mercado de trabalho serão óbvias entre estes dois grupos, com grandes diferenciais de conhecimento, em termos remuneratórios e de valorização e realização profissional.
Os processos de robotização sofrerão um crescimento acentuado, substituindo mão de obra pouco qualificada e permitindo à nova indústria competir com a produção industrial dos países de baixo custo da mão de obra.
A disponibilização e a gestão de bases de dados mais poderosas provocarão uma alteração significativa de um grande número de funções de gestão, com especial relevo para a função de marketing.
A atração e a retenção de talentos vai constituir a primeira prioridade de todas as empresas que atuam em mercados globais, onde a concorrência é muito agressiva.
No âmbito da teoria dos recursos, os talentos representam o recurso mais valioso e distintivo que garante índices de competitividade elevados para as empresas.
Um processo robusto e eficiente de atração e retenção de talentos é mais difícil de implementar em pequenas empresas, impondo a necessidade de o analisar em conjunto com as estratégias de crescimento dessas empresas. O processo de atração e retenção de talentos é muito competitivo, englobando todas as empresas, em particular as que atuam em mercados exigentes e sofisticados.
No mundo globalizado atual, as grandes empresas, em particular as que detêm uma grande notoriedade a nível internacional, têm vantagens claras, neste processo, sendo muito difícil e assimétrico este processo competitivo.
As fragilidades do nosso país, neste domínio, são óbvias e tenderão a agravar-se se não forem implementadas políticas públicas de incentivo ao investimento em áreas tecnológicas e de conhecimento intensivo.
Convencer o aluno mais brilhante da área da gestão, da engenharia ou das tecnologias, que informou a família da sua decisão de ir trabalhar para um país do norte da Europa, numa grande multinacional, quando terminasse o seu mestrado, a regressar ao seu país, para pôr ao serviço deste o seu talento e conhecimentos excecionais é uma tarefa muito difícil.
Os grandes desafios para o mercado de trabalho irão iniciar-se no sistema de ensino. Onde se prepararão os cidadãos do futuro para conviverem com estas novas ferramentas, utilizando, de forma ética e racional, todas as suas potencialidades.
As adaptações que terão de ocorrer, nas nossas escolas, em geral, e nas nossas universidades, em particular, são enormes.
A distinção e a diferença, ou seja, a variância, entre as boas e as más universidades vai, certamente, acentuar-se.
Espero, sinceramente, que as boas universidades, em particular, a nossa escola, o ISCTE, mantenham e incrementem os seus índices de exigência e de qualidade.
O país, em geral, e as novas gerações, em particular, agradecerão.
Gestor de empresas e professor convidado do ISCTE Executive Education
Texto integrado no livro 88 Vozes sobre Inteligência Artificial, projeto do ISCTE Executive Education, editado pela LeYa, que chega esta terça-feira, 10 de outubro de 2023, às livrarias.