O 'reality show' de que se fala

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João é o "terrorista" mais famoso de Portugal. Dele se conhece a história de vida que, a avaliar pelos milhões de palavras gastas nas televisões, rádios e jornais, se poderia presumir longa. Mas não é, ainda não chegou aos 19. A aldeia do João, se fosse agora o concurso Aldeias de Portugal, ganharia fácil a eleição. A família do João ficou a ser conhecida de mais portugueses na primeira hora em que as televisões chegaram à aldeia do que em toda a sua longa vida. E nós ficámos a conhecer a família do "terrorista", mais os amigos, os colegas, a porteira do prédio e quem quer que tivesse aparentado pisar o mesmo chão. Tivemos uns dias muito preenchidos, porque a nossa maravilhosa Polícia Judiciária quis que nós confirmássemos a sua competência. Foi elogiada em todo o lado e nós vivemos agradecidos. Se não fossem eles a saber o que fazer com a dica do FBI, estávamos todos mortos. Parece, no entanto, que a prazo estaremos mesmo todos mortos. Há muito que um reality show informativo não tinha tanto sucesso.

Acontece que, descendo à terra, foi fácil perceber que houve muito facilitismo no modo como a história estava a ser contada. Corremos a elogiar a PJ, sem cuidar de perceber que a nossa polícia não foi totalmente competente. Sim, terá evitado o que podia ter sido um massacre de estudantes, mas a vaidade é pecado que em nada contribui para a eficácia da sua função. Bem lembrou Cândida Almeida, a procuradora que teve de lidar com verdadeiros terroristas, que atos falhados não devem ser divulgados.

Imaginemos, por um instante que seja, que o João não representava o perigo que aparenta representar. Imaginemos, por um instante que seja, que o João era sobretudo um perigo para si próprio. Dá para voltar atrás no reality show montado e fazer as coisas seguindo as regras do bom jornalismo? Não, já não dá!

Vou confessar uma coisa espantosa. Estou entre os portugueses, imagino que poucos, que não viram nenhum episódio filmado na aldeia do João. Recusei. Ocupei-me a fazer outras coisas sempre que ouvia ou lia a palavra aldeia. E sinto-me melhor assim, não sei o nome da aldeia e de toda a história retive poucas palavras. Sei que o João se chama João e que conversava numa rede social, que falou das suas intenções a um norte-americano, que as terá denunciado ao FBI, que fez chegar a denúncia à PJ, que devia ter resolvido o assunto e remeter-se ao silêncio e não o fez. O que retiro desta história é que o diretor da PJ, o mesmo que esteve em todos os canais de televisão no dia em que a polícia sul-africana prendeu João Rendeiro (outro João!), quando se cansar de ser polícia pode ir trabalhar para uma produtora.

Não espero que as coisas, em próxima oportunidade, sejam de maneira diferente, porque a concorrência, que é benéfica em tanta coisa, puxa sempre para baixo quando o tema é a miséria humana. Talvez se pudesse pedir a quem tem responsabilidades políticas que não corra a engraxar as botas de uma polícia que anda demasiado sedenta de protagonismo. Tem tudo para dar asneira.

Jornalista

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