O que é isto do "filme mais pessoal de Miyazaki"? Desde que foi lançado no Japão, sem qualquer campanha prévia, tornando-se um imediato sucesso de bilheteira, O Rapaz e a Garça regenerou o discurso sobre os filmes pessoais do grande mestre da animação japonesa. E é fácil perceber o que motiva essa consciência: o rapaz do título parece claramente inspirado num jovem Hayao Miyazaki, que perdeu a mãe ainda em criança, e a Segunda Guerra Mundial em pano de fundo traz a marca de um tempo que nunca abandonou a memória do realizador. Sendo que, antes deste novo filme, já O Meu Vizinho Totoro (1988), Porco Rosso - O Porquinho Voador (1992) e, especialmente, As Asas do Vento (2013) tinham inscrito na sua obra ambos os vestígios biográficos, desde as personagens femininas com tuberculose (a doença com que a mãe morreu) ao tema dos aviões de guerra (o pai trabalhava numa empresa de fabrico desses aviões)..Esclarecida a dimensão íntima, O Rapaz e a Garça não é necessariamente uma experiência intimista. Surge, sim, como o filme mais dilatado da obra de Miyazaki, no sentido em que não deixa escapar nada de um imaginário construído ao longo de décadas, onde a mais serena imagem convive com a mais exuberante linguagem fantástica. Não há outro criador de animação que o faça desta maneira, conservando a agudeza emocional, neste caso, do seu protagonista (costumam ser raparigas) enquanto desafia as leis terrenas, para acrescentar mundos ao mundo..É ao som das sirenes que entramos no filme. Um incêndio num hospital de Tóquio põe o "rapaz", Mahito, a correr desesperado na sua direção - a mãe encontra-se no hospital e acabará por ser consumida pelas chamas. Ou melhor, tornar-se-á ela própria uma chama (que outro cineasta se lembraria...?). Parecendo que não, importa revelar este momento, porque toda a estrutura sentimental da história tem aqui a sua génese. Mais do que uma vez, o pesadelo dessa noite trágica em plena Segunda Guerra vem à mente de Mahito. E o que se segue não pode ser dissociado do trauma da morte da mãe: é uma resposta magistral à dor..Voltamos então a encontrar o jovem numa mudança de casa, para ir viver com o pai - o tal trabalhador da fábrica de aviões - e a nova figura materna, Natsuko. Um lugar por si só recheado de seres orgânicos do universo de Miyazaki, como seja um adorável bando de velhas governantas, com narizes inchados e rugas típicas. Neste cenário aparece a personagem enigmática de uma garça, ave que conduz Mahito a uma torre abandonada, iniciando-o numa aventura que o transfere para outro reino, onde deverá resgatar a sua mãe e também Natsuko, entretanto desaparecida..Transportados para esse outro mundo, somos os convidados de honra dentro de uma fantasia tão familiar quanto inaudita. Neste largo capítulo sobrenatural de O Rapaz e a Garça, Miyazaki dá largas ao espírito criativo, concebendo situações atrás de situações, e personagens atrás de personagens, que confirmam um desejo de síntese artística absoluta. Nesse reino há criaturinhas brancas aos molhos (chamam-se "warawaras"), pelicanos e periquitos gigantes, que veem em Mahito uma boa refeição, e uma paisagem mágica com toque de assombro que nos recorda muitas outras paisagens concebidas pelo mesmo autor. A certa altura, não será estranho sentir uma influência de Os Pássaros (1963) de Hitchcock, ou ainda da pintura de De Chirico e Dalí, mas essas são apenas sensações visuais num todo vertiginoso em busca da nota perfeita para encerrar uma obra..Dito isto, o octogenário Hayao Miyazaki pode muito bem continuar a surpreender com "derradeiros filmes" - afinal, O Rapaz e a Garça estreia-se uma década depois de As Asas do Vento, igualmente anunciado como um adeus ao ofício. E se esse outro filme é passível de ser visto como o mais maduro da filmografia do cineasta, pela ausência de criaturas fantásticas, a verdade é que o novo título tem qualquer coisa de recuperação de um imaginário de marca. Como se Miyazaki quisesse avolumar ao máximo o domínio espiritual, artesanal e estético do seu universo, dar acesso ao movimento do seu processo inventivo... por uma última vez..De todas as obsessões temáticas do realizador, talvez o ato do voo, e o elemento do vento a ele associado, sejam os mais belos símbolos do seu cinema, desde a primeiríssima longa-metragem, Nausicaä do Vale do Vento (1984), até ao bater de asas dos pássaros de O Rapaz e Garça. Daí que se identifique sempre no desenho pictórico das suas nuvens algo do fascínio literário de Saint-Exupéry: "Bruscamente, este mundo tão calmo, tão unido, tão simples, que descobrimos ao emergir das nuvens, tinha para mim um valor desconhecido. Era uma tranquilidade traiçoeira. (...) Este isco branco tornava-se para mim a fronteira entre o real e o irreal, entre o conhecido e o desconhecido" (Terra dos Homens). Uma descrição precisa das animações de Miyazaki. Territórios cuja morfologia se altera conforme a transposição da fronteira que separa o real e o irreal. Mundos manuseados pela imaginação suprema.