O que um solitário pode dizer a outro, ou Mireille e Benjamin numa rua de Paris
Mireille e Benjamin têm muito pouco em comum e no entanto juntam-se hoje na minha cabeça. Procuro cruzamentos, pontos de contacto entre a velha senhora de 85 anos morta com onze facadas no seu apartamento de bairro social em Paris e o músico inglês de 29 anos, esguio e com uma voz capaz de todos os cambiantes que fez delirar o Campo Pequeno na quinta-feira.
Mireille Knoll tinha 9 anos quando, graças a um passaporte brasileiro miraculosamente herdado do pai, escapou com a mãe àquela que foi maior captura massiva de judeus feita em França: nos dias 16 e 17 de julho de 1942, 13 mil pessoas foram presas em Paris e arredores e deportadas para a Alemanha. A operação, conhecida em França como Rafle du Vél" d"Hiv - rusga do velódromo de inverno, no quadro da operação Vento Primaveril. Mãe e filha conseguiram refúgio em Portugal e partiram depois para o Canadá, onde Mireille veio a casar-se com um sobrevivente do Holocausto. Criaram uma família em Paris, filhos, netos e bisnetos, alguns a viver hoje em Israel. Alertados para um fogo no seu apartamento, os bombeiros encontraram o corpo de Mireille na sexta-feira da semana passada. A justiça francesa está a investigar o caso como um crime de ódio religioso, por haver indícios de que foi a sua condição de judia que o motivou.
Benjamin Clementine mostra o manequim de uma criança e pergunta ao público: lembram-se deste peixe esquisito? Dança com o boneco que vai mais tarde desmembrar, como vai desfazer os outros manequins espalhados pelo palco, falando de guerra. Já cantou o fantasma de Aleppo, a Selva dos refugiados em Calais, o rapaz turco, temas do segundo disco. O público quer as canções mais íntimas do primeiro disco, e ele mergulha nesse passado recente cantando palavras dolorosas. E irá dar a volta à sala que exclama com ele "Porto Bello" insistentemente, prolongando por longos minutos a canção Ports of Europe, mais uma vez com os refugiados em fundo. O público vai devolver-lhe no fim do concerto esta referência, entoando espontaneamente a mesma ladainha de diálogo encantatório.
Ele que viveu e cantou nas ruas de Paris, sem-abrigo resgatado pela música e tornado ícone, diz que não pode deixar de falar destas pessoas desamparadas, da destruição causada pelas guerras, do que se passa em volta, mas nunca o faz num tom frio de panfleto. Nas entrevistas mais recentes, explica como lhe é duro revisitar o passado difícil, a infância, a juventude, e que é bom ter hoje dinheiro para comprar comida e pagar as contas. Que a música continua a ser feita por prazer e necessidade mas que o lado do negócio pesa, desfoca esse impulso. E que de algum modo é difícil viver esta nova realidade da fama. E que nesta última tournée só esteve em Espanha e em Portugal, porque são lugares onde compõe cantando e falando alto em longos passeios pelas ruas.
Porque é que os dois nomes se misturam hoje na minha cabeça? Pessoas desamparadas que tenazmente sobrevivem, talvez. Pessoas que viram aquilo que ninguém devia ter de ver, muito menos antes de serem adultas. Pessoas que cresceram apesar de, em reação a, olhando para dentro e continuando em frente para ganhar o momento de olhar em redor.
Mireille foi morta, segundo as informações que os jornais colheram junto da polícia, porque era judia e "os judeus estão bem na vida, têm dinheiro". Terá sido isto que um dos suspeitos presos disse ao outro. Os dois homens acusam-se mutuamente, "foi ele que matou, não fui eu, ele gritou Allahu akbar quando a esfaqueou". Um deles era vizinho dela e costumava ir lá a casa prestar pequenos serviços, "era tratado como se fosse da família", segundo o filho de Mireille. "Era muçulmano", segundo uma das netas que vive em Israel. Mesmo que tenha sido um crime vulgar de dois homens que resolveram matar uma mulher de 85 anos doente de Parkinson para lhe roubar dinheiro que não tinha, a frase de preconceito fica a ressoar: "É judia, deve ter dinheiro."
Para ligar as pontas, forço o cruzamento dos dois. Imagino-a a parar numa rua de Paris diante de um jovem negro magríssimo de voz extraordinária. Tantas coisas que podiam ter contado um ao outro.