O que se esconde nas costuras de uma marcha diferente
Os brilhos, as rodas, os folhos e todos os pormenores dos fatos dos 48 marchantes da Santa Casa que neste domingo vão desfilar na Altice Arena, e na terça-feira à noite na Avenida da Liberdade, saíram das mãos de Aldina Jesus e da sua equipa. A costureira veste a marcha da Santa Casa pelo segundo ano consecutivo e está nas marchas populares há quatro. Chegou a este mundo a convite de Nuno Lopes, o figurinista da marcha da Santa Casa, e depois de ter passado por dois ateliês de alta-costura e pelo teatro.
"Desde pequenina que vejo as marchas na televisão e lembro-me de pensar que um dia estaria a participar", recorda Aldina Jesus. E o sonho tornou-se realidade: "Foi um convite do Nuno Lopes para fazer a execução de uma marcha e começámos logo aí com três, acabámos depois por manter esta parceria."
E, apesar do stresse das últimas horas e do trabalho intenso, Aldina Jesus não esconde que não resiste a participar nesta festa popular da cidade de Lisboa - e é também figurinista da marcha da Bica. "É entrar de cabeça e pensar que as coisas vão correr bem", conta a costureira, que conjuga este trabalho mais sazonal com criações em nome próprio.
No dia do desfile, ela própria está na Avenida ao lado das suas marchas, tratando até à ultima de retoques finais de forma a impedir um desastre no guarda-roupa em plena performance. O que também já não seria inédito: "Já me aconteceu. Um marchante que ia com o arco e estava a fazer força. Acabou por rasgar a calça toda até quase ela cair pela perna abaixo, em plena Avenida." A solução foi "dar pontos duplos, triplos, quádruplos, tudo o que for preciso para garantir que está tudo bem na hora de passar em frente ao júri."
Mas passado esse stresse... "É um alívio, mas é também muito gratificante vê-los desfilar com roupas que nós começámos do zero."
A pouco mais de uma semana da entrada no Altice Arena, quando falamos com Aldina, a costureira e a sua equipa já têm os fatos praticamente prontos. No ateliê, na zona do Braço de Prata, em Lisboa, as saias já estão expostas nos cabides, as camisas dos homens aguardam as últimas colagens e o vestido da madrinha está em cima da tábua de passar a ferro, quase finalizado. Parece estar tudo encaminhado para um ano calmo, mas Aldina sabe que tudo pode mudar de um momento para o outro. "Às vezes achamos que uma colagem demora um tempo e depois demora o dobro, ou porque não cola bem ou é preciso fazer com mais cuidado. Por isso, o ideal é programar com tempo. Caso contrário temos de fazer diretas ou chamar mais pessoas", aponta a responsável pela execução de todos os fatos dos marchantes, padrinhos, aguadeiras e músicos da marcha da Santa Casa.
Mas até chegarem ao primeiro palco público - a Altice Arena, no dia 9 - ninguém pode divulgar como vão ser os figurinos. "Temos de preservar um pouco a imagem que procuramos que só apareça no Altice Arena, onde queremos causar impacto."
Ora é precisamente pelas roupas e pelos arcos que as marchas conseguem essa primeira surpresa. "O papel de um figurinista e cenógrafo é encher o olho às pessoas, mostrar o que é o colorido, a beleza, a alegria, a representação de uma marcha popular. E se pudermos pôr um bocadinho de glamour, melhor ainda", diz Nuno Lopes, que desempenha estas funções na marcha da Santa Casa e também na de Alfama, a vencedora do ano passado.
São dele os desenhos de todos os fatos que Aldina Jesus e a sua equipa estão a fazer. Também os arcos e os restantes acessórios usados na coreografia nas duas apresentações são da sua autoria. Tudo parte de uma parceria entre a ideia da organização e do próprio figurinista e cenógrafo.
Neste processo criativo, é preciso, no entanto, ter em conta que se trata de uma marcha popular, onde "tem de haver um misto de modernidade e tradição", aponta Nuno Lopes, acrescentando que "há coisas que não podemos fugir, senão tínhamos uma tendência enorme para o Carnaval". No fundo, o desafio é "manter uma coerência em trazer coisas novas, sem deixar de ser tradicional".
Posto isto, nos fatos, o prato principal são os brilhos. "Tem de ser algo que seja bastante chamativo, e que neste caso são as cores da Santa Casa e os símbolos. Procuramos ter sempre um tecido com brilhos, lantejoulas, organzas também, que nos dão um bocadinho mais de profundidade à peça, nas mangas. E, para os homens, tentamos ter a parte lateral toda mais adornada, porque é a parte mais visível", explica Aldina Jesus.
E, neste ano, foram precisamente os homens que mostraram mais ansiedade. "As senhoras estavam super-tranquilas, mas os homens estavam muito ansiosos, com uma expectativa muito grande de conseguirem experimentar logo, serem logo dos primeiros e vestirem tudo. "E o que é que vamos levar mais? Levamos gravata, de que cor é?" Mas pronto, tenta-se não revelar logo tudo. Manter algum secretismo."
Todos os marchantes têm opiniões a dar sobre o que vão usar. Afinal, são eles que vão ter de desfilar todas as roupas e adereços perante milhares de pessoas, durante as festas de Lisboa. E, quando se fala da marcha da Santa Casa, essa adaptação é ainda mais relevante. Estamos a falar de marchantes na sua maioria seniores ou com alguma dificuldade de mobilidade e, por isso, tanto a costureira como o figurinista e cenógrafo têm atenção à resistência física ou à dificuldade de locomoção dos elementos da marcha.
Nas roupas foi preciso mudar os saiotes. "No ano passado tivemos uns saiotes que elas queixaram-se imenso, que eram muito pesados e que quase lhes caíam pelas pernas abaixo. Neste ano fizemos outro tipo de saiote, com outros tecidos, mais leves, não utilizámos uns tubos tão pesados, utilizámos barbas de plástico. Ou seja, tentámos minimizar um pouco este choque que elas sentiram no ano passado."
Como responsável de pensar como vão ser todas estas peças, Nuno Lopes garante que em termos criativos não tem limitações, mas que tenta ajustar pequenos detalhes em relação "à realidade da marcha da Santa Casa". "É diferente as capacidades das pessoas que nela estão presentes, principalmente a parte de cenografia (arcos e acessórios), adaptar às dificuldades que eles possam ter."
Nada que atrapalhe o sentido de competição. Esse está lá sempre e, ainda que a marcha não esteja a concurso, desde os marchantes à equipa técnica todos querem pelo menos superar-se em relação ao ano anterior.
No terceiro ano de marcha, Andreia Tomás, animadora sociocultural do espaço Santa Casa (responsável pela organização da marcha), sente isso mesmo. Tendo em conta que o primeiro objetivo era "quebrar o isolamento e melhorar a qualidade de vida" dos utentes de vários equipamentos, o que a técnica vê é o empenho e a felicidade dos marchantes. "É enriquecedor todo o processo, desde o primeiro dia de ensaio até ao dia que temos a primeira apresentação, tudo o que estas pessoas dão para estar aqui, a disponibilidade que têm, raramente faltam. Eles dão tudo quando aqui estão, são pessoas muito atentas, disponíveis para ouvir, para aprender e dão tudo de si. Estão sempre com um sorriso na cara, independentemente do que se passa na vida delas e do percurso delas. E é isso que nos move e que move este projeto: é a alegria deles. E é para isso que nós trabalhamos todos os dias."