O que os americanos não fazem faremos nós
Primeiro, os vizinhos, Canadá e México. Depois, o Reino Unido, o aliado privilegiado (goste ou não goste Joe Biden de Boris Johnson), e de seguida os aliados mais importantes e que também se sentam nas principais organizações internacionais, França e Alemanha. Depois, Putin, o adversário que preocupa mais do que intimida. De seguida, os aliados a parceiros do lado do mundo que agora importa: Japão, Coreia do Sul, Austrália e Índia. E, finalmente, a China, o centro das preocupações internacionais dos Estados Unidos da América. No Médio Oriente, nada (e achar que não ligar a Netanyahu é mais por causa do seu apoio a Trump do que da alteração de prioridades americanas parece ser confundir relações pessoais com preocupações políticas). Em África, também não..
A lista das 11 primeiras chamadas internacionais do novo presidente dos Estados Unidos servem tanto para perceber as prioridades geopolíticas da América como para a Europa entender o seu papel, as suas responsabilidades e onde estão interesses de que deve cuidar.
Sobre o detalhe de Biden não ligar logo a Charles Michel, presidente do Conselho, ou a António Costa, presidente de turno da União Europeia (UE), digamos apenas que Biden sabe, como qualquer outro saberia, que a política externa é uma reserva essencial de soberania e que quem tem dinheiro é a Alemanha e quem tem porta-aviões nucleares e um lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas é França.
Tão importante quanto o que está naquela lista é o que não está. Porque o que não interessa aos Estados Unidos pode interessar-nos a nós, europeus. Mas se não interessa aos americanos e a nós interessa, então teremos de assumir responsabilidades e defender interesses. Coisas que exigem mais do que declarações de boas intenções e o famoso softpower europeu, que costuma querer dizer "influenciar com dinheiro, voz doce e bons modos, mas sem pôr as botas no terreno".
As duas geografias evidentemente fora das prioridades americanas, ou da lista de interlocutores próximos, são, exatamente, aquelas onde os interesses europeus são mais significativos. Do Médio Oriente e de África vêm os fugidos das guerras, da miséria e dos regimes violentos, que chegam às costas europeias. Para África vai a maior parte do dinheiro europeu para a cooperação. Do Médio Oriente ainda vem bastante petróleo e gás que nos abastece. Em ambos os lados há histórico de relações que pesa, para o bem e para o mal. E em África, a competição com a China pela influência e pelos recursos é crescente.
Tudo isto também importa aos americanos (a quem, de resto, tudo o que se passa no mundo interessa, obviamente). Mas nada disto está, hoje, no topo das suas prioridades.
Por todas as razões, as generosas e as que mais contam na política internacional, a Europa tem de se preocupar com a sua vizinhança a leste e a sul. Em coordenação com o aliado a ocidente, mas sabendo que desta vez terá mesmo de assumir custos e responsabilidades.
Nas últimas semanas, os ministros dos Negócios Estrangeiros e da defesa de Portugal, aproveitando a visibilidade e a responsabilidade da presidência da UE, afirmaram, precisamente, que a relação com os Estados Unidos é inequivocamente prioritária, e que a relação europeia com África tem de evoluir para um diálogo sobre segurança e defesa. Em ambos os casos, Santos Silva e Gomes Cravinho interpretam bem a intersecção da tradição portuguesa com a agenda europeia.
Presidir à União Europeia não é mandar na Europa, mas é uma oportunidade para dar destaque ao que nos interessa. Na política externa portuguesa, pelos vistos, há mais (afirmação) do mesmo (prioridades). Continuemos assim.
Consultor em assuntos europeus