O que mudou e o que está igual um ano após a eleição de Lula?

Especialistas ouvidos pelo DN aplaudem "distribuição de renda", "ânimo na economia", "regresso da influência internacional" e "combate ao crime ambiental". No entanto, depois de cada elogio usam sempre um "porém".
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A 30 de outubro de 2022, após vitória apertadíssima - por 50,9% contra 49,1% dos quase 120 milhões de votos -, Lula da Silva voltou, 12 anos depois de ter saído, ao Planalto, batendo Jair Bolsonaro, primeiro presidente da história a falhar a reeleição. Desde então, o que mudou? Tudo, dadas as enormes diferenças entre o político de centro-esquerda e o de extrema-direita? Ou nada? Segundo especialistas ouvidos pelo DN mudou muita coisa, porém - todos eles usam bastantes "poréns" - há longo caminho até 2026, ano das próximas presidenciais.

Na política interna, Lula vem sendo fiel a uma das suas máximas - "temos de colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda". Com essa máxima em mente, o governo desenvolve "uma agenda própria" o que o diferencia, desde logo, do governo anterior liderado por Bolsonaro, segundo Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"A diferença central em relação ao governo anterior, e, também, ao de Michel Temer, que deixavam as lideranças do Congresso levarem a cabo as suas agendas clientelistas, é que este governo tem uma agenda própria".

"Essa agenda", sublinha Mayra Goulart, "passa pela recuperação da capacidade do estado para a realização de políticas públicas que gerem distribuição de renda e ativação da economia". "A capacidade do estado havia sido desbaratada pelos antecessores, cuja prioridade era a sobrevivência no poder e, depois, no caso de Bolsonaro, os temas dos direitos civis, e, no de Temer, a aplicação de um neoliberalismo muito forte".

O governo Lula, entretanto, mantém as práticas clientelistas na relação entre poderes executivo e legislativo para governar: em troca de apoio no Congresso distribui ministérios a aliados de circunstância. "A diferença é que para o fazer, o atual governo tenta negociar mais com os partidos, em vez de negociar com bancadas suprapartidárias, como vinha sendo hábito", diz Mayra, que recorda que Lula "recuperou também fóruns de participação civil, algo erradicado nos governos de Bolsonaro".

Na Economia, área dividida em duas pastas, Finanças, cujo ministro é Fernando Haddad, o delfim de Lula, e Planeamento, de Simone Tebet, a terceira mais votada nas eleições, "os indicadores são muito animadores", diz Cristina Helena de Mello, professora de Economia da Escola Superior de Propaganda e Marketing.

"De Lula para Bolsonaro, houve mudanças expressivas, nomeadamente no esforço de articulação política para alterar o teto de gastos, que limitava muito a prática de políticas públicas, e na aprovação da reforma tributária, uma luta de 30 anos". "Isso", de acordo com Cristina, "mexeu com as expectativas e tornou muito animadores alguns indicadores, como o crescimento, os salários, o controle inflacionário, as importações e as exportações".

"Porém nem tudo é um paraíso", adverte. "O crescimento não está alicerçado no setor de máquinas e equipamentos nem se veem medidas de reversão da desindustrialização, ou seja, o crescimento não é ainda perene".

Nos quatro anos de Bolsonaro - ou melhor, de Paulo Guedes, o superministro da Economia do governo anterior - "sobrou ideologia e faltou pragmatismo". "Não há economia que cresça só com o setor financeiro, faltou investir no setor produtivo e o estado é essencial nesse investimento".

"No entanto, devemos ter sempre em conta na avaliação ao período de Bolsonaro e de Guedes que o governo enfrentou a tragédia da pandemia, um momento muito desafiador".

Depois dos anos Bolsonaro, cuja política externa é vista por observadores como um deserto, os objetivos principais do governo na área - discutir o combate à fome e a política ambiental - foram diminuídos pelas convulsões geopolíticas - guerra na Ucrânia e em Gaza, por exemplo.

"Lula queria assumir liderança internacional no combate à fome e na agenda ambiental porém foi atropelado, em ambos os casos, pelas tensões geopolíticas internacionais", concorda Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado e da Fundação Getúlio Vargas.

"Portanto, a política externa de Lula no primeiro ano é muito condicionada pelas tensões entre China e Rússia, de um lado, e Estados Unidos e União Europeia, do outro".

"Entretanto, Lula, que se beneficia das credenciais de líder equilibrado, cumpriu bem o papel de chefe de estado, reconduzindo o país após o descalabro dos anos Bolsonaro". Segundo Vieira, "no principal objetivo da política externa de qualquer país, que é dotá-lo de influência para defesa dos seus interesses no mundo, foi, claramente, muito bem-sucedido, ao conseguir restabelecer laços com a França ou com a Alemanha e uma parceria inédita com os Estados Unidos sobre direitos laborais no contexto mais amplo da uberização"

"Porém, do ponto de vista pessoal, se a ambição dele é ganhar o Nobel da Paz, como dizem nos bastidores, está em dívida, não por falta de habilidade, mas porque os temas mais soft, fome e ambiente, foram, de facto, atropelados pela geopolítica".

Noutros tabuleiros, Lula ganhou e perdeu, segundo Vinícius Vieira. "Nos BRICS, perdeu braço de ferro com a China mas pode beneficiar-se da inclusão da Argentina, na questão da liderança na América do Sul, depende da vitória ou não de Sergio Massa no país vizinho, já na Ucrânia, fracassou porque pressionou demasiado num tema em que jamais o Brasil seria capaz de ter papel relevante".

Na área ambiental, os desafios do Brasil - e do mundo - são gigantescos mas um ano após as eleições já se notam melhorias nesse campo, de acordo com especialistas.

"Com Lula, houve uma tentativa de travar o desmatamento e de combater a entrada fácil de garimpeiros ilegais, a tarefa é difícil porque o espaço é muito grande mas, pelo menos, agora temos um governo que adotou uma posição de controle", afirma Rogério Machado, professor de Química e Meio Ambiente na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Faculdade São Bernardo.

"Antes, não havia ordem superior para enfrentar os ilegais, o desmatamento sob Bolsonaro atingiu inclusivamente regiões com indígenas, o que gerou alarido nacional e internacional, e, no início, até as medições do governo foram colocadas em causa pelo governo, ou seja, o mundo acreditava nas medições do governo brasileiro e o governo brasileiro não", recorda.

Lula e Marina Silva, a ministra do Ambiente que se candidatou três vezes à presidência da República, têm dado muita ênfase a eventos como a cimeira, em Belém, que acolheu em agosto os países com ligação à floresta amazónica. "Esses eventos ajudam a que o país não fique de fora da discussão de um problema que é interno", diz Machado.

"Claro que o Brasil pede ajuda ao primeiro mundo, porque o Brasil, em certo sentido, é terceiro mundo ainda, mas manda a mensagem para fora de que não é adepto do que está a acontecer e, dessa forma, o mundo fica mais interessado em colaborar com o Brasil".

Por outro lado, há tensões entre Lula e Marina sobre a exploração do petróleo no estado do Amapá. "Sim, mas se no governo Lula há uma tensão entre Ambiente e Economia, com Bolsonaro não havia sequer essa tensão, a Economia sempre ganhava".

E o futuro? "Vêm aí desafios: com as mudanças climáticas, o El Niño forte e o desmatamento, a Amazónia, um dos lugares com mais água doce superficial do mundo, sofre com secas, estamos a ver, imagine-se, o fundo dos rios, esse problema, gravíssimo, terá de ser enfrentado em 2024".

Na esteira do que foi apontado pelos especialistas em Meio Ambiente, Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca o combate aos crimes ambientais como principal evolução na área da Segurança de Bolsonaro para Lula.

"O que mais chamou a atenção foi o foco urgente e necessário da Polícia Federal nos crimes da Amazónia, como garimpo ilegal, crimes contra o meio ambiente e combate às organizações criminosas, isso foi importante", disse.

"Porém, as melhorias ficam por aí", diz. "Não há nada de muito concreto sendo feito no governo Lula em matéria de segurança pública neste seu terceiro mandato, quer em relação ao crime organizado no resto do país, à violência contra a mulher ou aos homicídios, não vemos que Lula, infelizmente, se tenha esmerado em fornecer respostas para problemas graves".

Alcadipani acrescenta que "após as críticas ao que aconteceu recentemente no Rio de Janeiro [execução de três médicos confundidos com milicianos e incêndio em 35 autocarros e num comboio pela milícia em retaliação à morte de um líder em tiroteio com a polícia], o governo Lula começa a esboçar uma reação mas ainda deixa muito a desejar, com ações muito tímidas na área da segurança, um dos problemas mais graves do Brasil".

ENTREVISTAS

(líder parlamentar do PT)

Quais os maiores desafios do governo até agora na política?
Ao lado dos poderes Judicial e Legislativo, Lula reforçou a importância da democracia ao enfrentar firmemente os golpistas do 8 de janeiro. O semestre foi espinhoso e exigiu ação firme das instituições em defesa da democracia e no combate ao ódio e à intolerância.

O que destaca na economia?
Na economia, a despeito da criminosa taxa de juro decretada pelo Banco Central autónomo, cresce a geração de emprego e renda. Contrariando os pessimistas do mercado, a economia deve crescer este ano 3,2%. Os pobres estão de novo no orçamento, sendo a principal conquista a volta do revolucionário Bolsa Família, maior programa mundial de combate à fome, iniciado no primeiro mandato de Lula e encerrado pelo governo neofascista anterior, que conseguiu a proeza de levar o Brasil de volta ao Mapa da Fome da ONU. Nos últimos seis meses, três milhões de famílias saíram da pobreza graças ao Bolsa Família. Entretanto, o governo, com a sua base no parlamento, dialogou para aprovar o novo marco orçamental e a reforma tributária e valorizou o salário-mínimo.

Lula sempre destaca o papel do país na área ambiental. O que foi feito?
O Brasil voltou ao cenário internacional, depois de se ter tornado praticamente um pária em razão da atitude negacionista do governo anterior. Houve, na defesa do meio ambiente, combate aos criminosos ambientais na Amazónia e outros biomas e defesa dos direitos dos povos indígenas. Uma iniciativa estratégica é o Novo Programa de Aceleração do Crescimento, que prevê a transição energética, com investimentos futuros em fontes de energia limpa e renovável.

(vice-líder parlamentar do PL)


Como se está a sair o governo Lula na relação com o Congresso?
O governo Lula começa com o pé esquerdo a relação com o Congresso, não consegue maioria, mesmo com um número gigantesco de ministérios - está a ser criado o 39.º - distribuídos pelos partidos.

Na economia, como analisa os indicadores até ao momento?
Lula vem com uma filosofia económica completamente ultrapassada, retrógrada, com o intuito de taxar mais e aumentar os impostos, o que dá um sinal muito ruim para o mundo e para o mercado e diminuiu a nossa competitividade. A dívida pública chega a seis biliões, portanto, no primeiro ano, o governo coleciona derrotas gigantescas.

Houve nos últimos anos uma mudança de liderança num banco público...
Dá agora um sinal positivo, ao trocar a liderança da Caixa Económica Federal [Lula demitiu da presidência do banco público Rita Serrano, que nomeara em janeiro, por Carlos Fernandes, a pedido de Arthur Lira, do Partido Progressista, presidente da Câmara dos Deputados], tentando levar o Partido Republicano e eventualmente o Partido Progressista para a sua base de apoio mas, mesmo assim, o Congresso é de centro-direita, metade do Partido Progressista é oposição, metade do União Brasil, que tem quatro ministérios, é oposição, o que revela a inabilidade do governo com a política e a economia.

Como avalia a ação do governo nas relações internacionais?
Do ponto de vista geopolítico, o Brasil tem muito potencial, está bem-posicionado num mundo pós-covid e em momento de guerras por ser um país sem inimigos, ter potencial energético forte, ter um mercado consumidor gigantesco a ser explorado mas com Lula país perde oportunidades.

dnot@dn.pt

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