O que fica para a história

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Citius, Altius, Fortius, o lema adotado por Pierre de Coubertin para os Jogos Olímpicos, que significa "mais rápido, mais alto, mais forte", incentivava mais à superação do que à vitória. Coubertin fazia questão de o complementar sempre com "o mais importante não é vencer, mas participar".

Mas todos querem ganhar. Ser o primeiro, medalha de ouro. Ninguém quer a prata, muito menos a consolação do bronze. O pódio é para os melhores de todos, naquele objetivo. Mas ser o segundo é ser o primeiro derrotado, e ser o terceiro é ser derrotado por dois.

Ninguém luta para ser o terceiro melhor em qualquer coisa, há sempre um sabor a derrota. Como a história daquele tipo que era o segundo melhor guitarrista de jazz do mundo, a seguir ao Django Reinhardt.

A sociedade global em que vivemos e o seu modelo capitalista dominante defendem e estimulam a competição, a vida por objetivos.

O mundo é dominado pelos vencedores. A história é dominada pelos vencedores, escrita por eles. A versão dos vencedores apaga a dos vencidos, é a que fica para a história.

Admiro, como toda a gente, muitos vencedores, no desporto ou na vida em geral. Mas, mais do que os vencedores, o que me interessa são os que têm a melhor história.
Talvez seja deformação profissional, mas o que realmente me interessa e aquilo que mais valorizo é a história por detrás daquele feito, o que se jogava ali, as diversas personagens envolvidas. E acontece muitas vezes descobrir que a melhor história não é a do vencedor, mas sim a do derrotado. Ou perceber que o derrotado é um vencedor maior se o olharmos doutro ponto de vista.

Não é desvalorizar os vencedores, é pô-los em perspetiva. Sobretudo pôr em perspetiva uma sociedade estruturada por objetivos.

Da gestão à política, a prática de agir em função de objetivos sempre me pareceu não só limitada mas sobretudo contrária ao que de melhor pode haver na experiência de cada um com o trabalho que escolha fazer: a possibilidade de haver muito mais aprendizagem, realização e felicidade para além dos objetivos traçados, naquilo que o percurso revelará e à partida ainda não se conhece.

A lógica dos vencedores só deveria prevalecer em contextos muito circunscritos, como o desporto ou jogos e competições diversas de objetivos lúdicos.
Em arte não há vencedores nem vencidos (a não ser no combate de cada artista consigo próprio). Na vida também não. Pelo menos nunca da maneira simplista como muitas vezes a narrativa dominante leva a crer.

Chegamos finalmente a um tempo em que toda a história mundial está a ser revista e acrescentada de outras visões, para lá da visão dos vencedores. As cruzadas vistas pelos árabes, ou os descobrimentos vistos pelos indígenas americanos, por exemplo. Este enriquecimento de visões diferentes e contraditórias sobre o que aconteceu traz-nos uma capacidade maior para enfrentar os perigos do nosso mundo global atual.

É tempo de pôr em causa, começa a haver cada vez mais gente a dizê-lo, o modelo capitalista global. Tal como aconteceu com o comunismo, que gerou terríveis monstruosidades, também o capitalismo desregulado - e o seu modelo predador de exploração desenfreada de recursos e especulação financeira abstrata e autista, sem ter minimamente em conta o bem comum - está a destruir todo o esforço de paz e o equilíbrio da vida comunitária global e do próprio planeta.

Não poderemos deixar de falar da necessidade permanente de crescimento económico e passar a falar antes da necessidade urgente de sustentabilidade?

Para que precisamos de crescer mais? Não é possível conciliar o desenvolvimento económico e tecnológico com um ambiente de cooperação em vez de competição?
Só num contexto de guerra ou competição é que há progresso técnico e científico? De que adianta esse progresso se a qualidade de vida global retrocede?

Não precisamos de ser mais ricos, precisamos de ser menos pobres. Precisamos de mais equilíbrio, de sustentabilidade.

Não precisamos de uma sociedade de vencedores. Precisamos de uma sociedade vencedora. A ficar para a história com melhor história, com melhores histórias.

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