O que fica das memórias
Destes pobres espezinhados, revolvidos, nascem as coisas eternas
(Raúl Brandão)
Vivi toda a infância a mudar de terras em Portugal e a maior parte da idade adulta a mudar de países. Mas todas as chegadas aos novos postos me traziam à lembrança o momento no convés do navio em que olhava com meus pais as luzes da ilha onde iríamos viver nos próximos anos, enquanto aguardávamos a lancha que nos transportaria ao cais.
A nossa chegada ao Redondo, no Alentejo, não teve o apelo da lancha iniciadora que nos levava sobre as águas noturnas dos mares açorianos: o táxi que nos transportava deteve-se frente a uma ribeira que tinha alastrado e inundado a estrada por onde viajávamos. Esperámos que um outro táxi chegasse à margem de lá do ribeiro, para nos transportar ao destino, e não foi uma lancha que então nos levou sobre as águas, foram os nossos próprios passos mergulhados na lama.
Em cada lugar da minha infância eu refazia o mundo e as coisas novas vinham ter comigo devagar.
Aprendia pronúncias diferentes da língua que era a minha, matizes e contrastes nos modos de vida, toadas musicais distintas na origem. Mas sempre uma constante permanecia: a pobreza; os pés descalços por toda a parte; as roupas coçadas e rotas sobre os corpos. Eram os pobres, e pouca diferença faziam os pobres entre os Açores e o Alentejo. Na escola acudiam com as suas roupas de tecidos grosseiros e os pés descalços, ao nosso lado, ao lado dos meninos ricos e ricos eram os que tinham sapatos nos pés, camisolas quentes e almoço à espera em casa.
Conheci através da infância as diferenças que rasgavam o meu país. E a sua beleza rude e contida, que não se exibia aos turistas e não suportava enfeites. Os anos 50 eram tristes e austeros. Não sofremos os horrores da guerra nem tivemos as alegrias da libertação. Continuávamos, como se estivéssemos nos anos 30, a representar cenas estafadas das ditaduras europeias, cenas que Valéry insidiosamente elogiara no passado. Mas não havia agora mais lugar para hipócritas "políticas do espírito".
A escola no Alentejo ensinava para a vida toda a realidade das classes e toda a crueza das desigualdades: os meninos pobres olhavam para
nós com um misto de orgulho e de rancor e diziam uma frase que nunca mais esqueci e que guardei comigo: "tu não és mais qu"a mim!"
Mas eram esses meninos pobres que, quando a sua insubordinação atingia o grau que levava a chamá-los de "correços", eram levados da escola para o posto da GNR mais próximo, onde apanhavam as chibatadas merecidas, os "safanões dados a tempo" que preservavam a paz escolar.
O Estado, na cantina ao almoço, e a Igreja, na catequese ao lanche, alimentavam aqueles meninos e os professores, à parte os episódios dos "correços", tratavam-nos tal como nos tratavam a nós. Mas nós, os filhos do juiz, do diretor das finanças, do relojoeiro local, éramos os ricos. Nós gozávamos de um estatuto implícito que, se nos distinguia socialmente na vila, no espaço da escola nos expunha a uma difusa desconfiança da parte dos pobres, que se sobrepunha à natural camaradagem infantil.
Os nossos colegas ciganos eram discriminados porque eram diferentes; mas não eram, que me lembre, particularmente hostilizados, para além do desprezo que é inerente a toda a discriminação. Vestiam as mesmas roupas de serapilheira
esgarçada que usavam os pobres e desafiavam-nos, mas sem nunca nos assustar.
Quando volto ao Alentejo, a memória desse tempo de infância acode-me logo, sem necessidade de recorrer às "madeleines" do Proust: basta o calor que me envolve o corpo e a terra que me alarga o olhar. Por muitos lugares em que tenha vivido, sinto-me sempre daqui. Aqueles tempos eram de chumbo e de cinza, mas as memórias nunca deixaram de ser de alegria...
E pensar que, segundo o economista Nuno Palma, da Universidade de Manchester, esses anos constituíram o período mais glorioso do crescimento económico de Portugal nos últimos anos...
Diplomata e escritor