O que fica com os que ficaram
A HBO estreou recentemente a série Chernobyl, baseada nos acontecimentos que tiveram lugar há 33 anos na Ucrânia, nessa época ainda pertencente à União Soviética.
A série segue um livro da escritora bielorrussa Svetlana Alexievich, nobel da Literatura em 2015, Vozes de Chernobyl, um extraordinário relato feito de uma notável mistura e justaposição de monólogos escritos a partir da recolha de centenas de testemunhos impressionantes dos que viveram no local a tragédia ocorrida e de responsáveis do regime soviético.
A série, brilhantemente realizada e produzida, ainda que com imprecisões ou mesmo erros científicos já apontados em relação aos efeitos da radiação, não deixa por isso de ser uma poderosa obra ficcional que nos lembra e alerta para um tema crucial do nosso tempo: a possibilidade de acidentes devastadores causados por incompetência humana acontecerem - acidentes nucleares no caso concreto; e a forma como os poderes vigentes podem omitir, negar ou iludir responsabilidades pondo em risco ou abandonando à sua sorte os seus concidadãos mais desprotegidos.
O efeito imediato que teve em mim o visionamento da série foi só ter percebido agora algo que não percebi na altura: Chernobyl foi um dos acontecimentos mais importantes do meu tempo de vida. De importância e repercussão global, tal como a chegada à Lua, a queda do Muro de Berlim, o ataque às Torres Gémeas ou a libertação de Mandela.
Naquela altura parecia uma tragédia remota, uma explosão na União Soviética. Hoje, diz-nos com veemência a série, sabemos que foi muito mais do que isso e poderia ter sido uma terrível catástrofe para grande parte da Europa também.
Para nos lembrar disso, mais ainda do que a série, são as imagens atuais da cidade-fantasma de Prypyat abandonada desde essa altura, isolada, vazia. Hoje unicamente visitada pela indústria do dark tourism, que leva pessoas aos perímetros do reator nuclear ou do parque de diversões desativado da cidade (aliás, por efeito da série tem já havido um aumento do número de visitantes).
É uma vontade semelhante à que leva pessoas aos antigos campos de concentração, como Auschwitz, que recebe visitantes de todo o tipo, incluindo turistas que posam em fotos para o Instagram com a mesma indiferente e sorridente celebração com que se fotografam numa qualquer Disneyland.
Mais do que um vazio, há uma ausência nesses lugares, nessas cidades-fantasmas, densamente povoadas das memórias do que ali antes acontecia, do que ali aconteceu e do que agora não acontece mais.
Podem ser cidades destruídas por terríveis acidentes naturais ou - muito pior ainda - cidades destruídas pela ação humana: pela guerra, pela invasão, pelo extermínio.
No livro O Mundo sem Nós, Alan Weisman escreve sobre como seria um planeta sem a espécie humana: como a natureza ocuparia o espaço antes ocupado pelos humanos e que traços sobreviveriam deles.
O autor relembra que no passado outras civilizações desapareceram, como a civilização maia, da qual só restaram templos de pedra e vestígios neles gravados; e especula sobre o que restaria no futuro de cidades como, por exemplo, Nova Iorque, que começaria por ter os seus esgotos entupidos e os túneis de metro inundados, os pavimentos corroídos e os edifícios desmoronados.
Não é um livro apocalíptico, é uma especulação com base científica sobre o fim da nossa civilização, nas palavras do crítico Tom Spears: "É mais como um retrato de nós mesmos, através de uma lente estranha (...) às vezes um obituário é a melhor biografia."
É inegável que a espécie humana está a destruir o planeta, há um excesso de população e um desequilíbrio predador descontrolado no consumo de recursos naturais. Para além do efeito destruidor do belicismo humano, da guerra.
Conseguiremos sobreviver a nós próprios?
E se houver sobreviventes, serão quem?
Como lidarão com o vazio que ficará depois do desaparecimento de todos os outros?
Há inúmera e diversa literatura sobre o assunto (a começar pela Bíblia e as passagens do dilúvio).
Uma das séries mais interessantes dos últimos tempos é The Leftovers (também da HBO, inspirada num romance com o mesmo título da autoria de Tom Perrotta).
A história parte de um acontecimento inexplicável: o súbito desaparecimento de 2% da população mundial, 140 milhões de pessoas, sem nenhuma explicação. A série conta o que acontece depois desse evento a que foi dado o nome de "Partida Repentina", o que acontece aos que ficaram, os que foram deixados para trás.
É uma premissa genial. Uma ilustração da arbitrariedade da morte.
Nós somos sempre os vivos, os que ficaram, depois dos nossos desaparecidos. Um desaparecimento é sempre algo inexplicável.
Todas as cidades vão ficando cidades-fantasmas. Nós, tal como turistas, tiramos fotografias. Às vezes sorrimos para a foto.
A partida repentina está sempre a acontecer, todos os dias.
Nós somos os que ficaram para trás, os que sobraram.