O que ela sabe e como se faz. Maria de Lourdes Modesto tem um novo livro

Chama-se "Coisas que eu Sei" e chegou esta semana às livrarias. A tempo do 91.º aniversário da sua autora, a maior especialista em cozinha tradicional portuguesa.
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O lugar de Maria de Lourdes Modesto na memória coletiva dos portugueses é grande e só perde para o lugar que ela ocupa na história da gastronomia nacional com o canónico "Cozinha Tradicional Portuguesa", que a editora Verbo lançou em 1981, e que tem sido inspiração de novos e premiadios chefs, como José Avillez (duas estrelas Michelin no Belcanto, em Lisboa). A escrita acompanhou-a sempre, durante e depois da televisão a ter feito popular. Esta semana, a tempo do seu 91.º aniversário, foi lançado mais um título, "Coisas que eu Sei", uma compilação de crónicas sobre a cozinha nacional e, claro, receitas, com ilustrações de João Pedro Cochofel.

É o segundo livro que Francisco Camacho, editor da Leya Oficina do Livro, lança com a autora, "a grande referência da gastronomia portuguesa", como lhe chama. O primeiro é de 2014, "Sabores com Histórias" e este segue o mesmo conceito. "Não é um livro de receitas, embora também as tenha, mas de à volta de alimentos e técnicas de cozinhar", diz ao DN. "Indo à essência do cozinhar", acrescenta.



"É um livro para se ir lendo no comboio", segundo a definição de Maria de Lourdes Modesto ao editor. "Porque a Maria de Lourdes, além de ser a nossa maior gastrónoma, é uma grande escritora e fala dos alimentos como se fossem pessoas, dá-lhes qualidades humanas. As pessoas que a seguem desde sempre. aprendem com ela como usufruem bastante com a escrita dela. Há uma certa fruição literária quando se está a ler a Maria de Lourdes Modesto", considera.

A relação com a autora começou em 2014. "Fui um bocadinho maçador há sete anos", diz Francisco Camacho. "Ela é uma pessoa extremamente empática, quando é próxima, é próxima, confiou em mim". Depois desse livro, ficou sempre a intenção de publicar um segundo, que deveria ser um livro de receitas, mas que nunca chegou a acontecer. Até agora - o momento em que a especialista volta às suas crónicas gastronómicas. Uma delas, de que o DN publica um excerto, refere-se aos sabores da sua infância, no Alentejo, nomeadamente a açorda, explicando como se faz. Maria de Lourdes Modesto, nota o editor, vai da sopa de pescadores do Barreiro ao crepe suzete, passando gengibre e o tomate como pelo arroz doce ou as areias de Cascais.


Mas, frisa Francisco Camacho, Maria de Lourdes Modesto "não é uma mulher nostálgica". Ela própria o nota quando fala do livro, numa nota de apresentação da Leya/Oficina do Livro: "Não pensem que têm pela frente a padeira de Aljubarrota da cozinha tradicional, inflexível a qualquer mudança. Apenas se pede que separem as águas - a chamada cozinha de autor não tem memória, é por regra, irrepetível. A tradicional é factor de identificação de uma região, de um grupo, de um país, e quer-se bem copiada".


"Ao lembrar os excelentes comeres do Alentejo, a primeira coisa que vem à memória é a Açorda. A que por ignorância em todo o País chamam «sopa alentejana». Ora a cozinha alentejana, a sua grandeza, vem-lhe justamente das suas inúmeras sopas. A Açorda, essa, por ser tão especial e presente, é a que mais lembra.

Quando entre alentejanos falamos de Açorda, não precisamos de dizer mais nada. Todos sabemos do que se trata. Sopas (em fatias ou cunhas) de verdadeiro pão alentejano, escaldadas com um caldo que rescende a coentro, a alho e a azeite e que, apesar do forte escaldão, não devem desfazer-se até que a última «sopa» satisfaça o mais arrojado e lhe dê o ámen.

É comida de ricos e de pobres, e perde-se a conta ao número de versões com que se apresenta, sem perder a matriz.

Imaginemos um grupo de alentejanos à conversa. Em dada altura há um que diz «abalar» porque tem a açordinha à espera. Todos sabem o que o nosso amigo vai comer, mas há um que por curiosidade o interpela: mas ó compadre, de que é a sua açorda? Eu sei cá, a mulher fá-la de tantas maneiras...

Aquele especial e forte aroma vem-lhe principalmente do «piso» bem esmagado no almofariz, em pasta, que é por onde tudo começa: alho pisado com sal grosso, coentros, muitos, ou de poejos, ou de uma mistura dos dois e, no tempo dele, uma tira de pimento verde não lhe vai nada mal.

Deitado o piso na tigela ou na terrina, é regado com o doce azeite alentejano. É a ele que a açorda deve aqueles lindos olhos amarelos que exibirá à tona do seu caldo.
O caldo, embora pareça, não é sempre igual: há quem o faça só com água simples a ferver, realçando o aroma das ervas do piso. Com uma posta de bacalhau cozida em água simples, faz-se um caldo rescendente para toda a família. O gadídeo cozido será esfarrapado em lascas que, na travessa, farão boa companhia aos ovos escalfados ou cozidos. Neste caso, temos a açorda de bacalhau. Para abrilhantar a festa não se esqueça de pôr na mesa as azeitoninhas, quer britadas, quer retalhadas, tanto faz, mas sempre com lugar cativo na mesa alentejana.

Em casa, geralmente acompanha-se de ovos escalfados, um por pessoa, mas se for para levar para o campo, já são cozidos. Se houver quatro bocas e só dois ovos, desfazem-se no caldo e passa a dar para quatro. A Açorda, como em geral a cozinha alentejana, a mesma comida é comida tanto para ricos como para pobres. Lá vai o tempo em que no «baile dos ricos», a meio do serão se servia uma cheirosa e imponente Açorda, revigorando os bailarinos até de manhã."

(Excerto de "Coisas que Eu Sei")

"Coisas que Eu Sei"
Maria de Lourdes Modesto
Ilustrações de João Pedro Cochofel
Leya/ Oficina do Livro
204 páginas
PVP 21,90 €

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