O que é que o Sahel tem?

Os últimos três anos marcaram uma tendência quase tropical, no investimento político-diplomático russo numa África sem praia nem coqueiros a tombarem sobre o mar. O que é que o Sahel tem que marca e define esta conquista russa em África?
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A morte de José Estaline marca o fim de um ciclo soviético (1922-1953) e o seu sucessor, Nikita Kruschev (1953-1964), necessitava de uma "mentira nova" para mobilizar a expansão do comunismo, projetando-lhe também uma imagem de liderança internacional. Nada de mais conveniente que a vaga de descolonizações que espoletou África adentro a partir da década de 1960. Durante a década de 1950, Moscovo acompanhara de perto a vaga de independências norte-africanas, tendo colocado "lanças importantes" no Egito e na Argélia. É a partir de 1960, com a independência do "Congo Belga" que os soviéticos começam a delinear uma estratégia para África. A nova República do Congo (hoje com "Democrática" no meio), logo após a independência teve um primeiro-ministro pró-Moscovo, Patrice Lumumba (junho 1960-setembro 1960). Assassinado a 17 de janeiro de 1961, é durante as movimentações no hiato de tempo entre setembro de 1960 e novembro de 1965, data do golpe que levou Mobuto Sese Seko à presidência do que seria o futuro Zaire, que a União Soviética percebe que não ter a presença efetiva de séculos dos europeus, se tratava de uma desvantagem a considerar, juntamente com o facto dos arquirrivais da CIA terem relações próximas com todos os colonizadores europeus. Perder Lumumba para Mobuto foi o "abre olhos" que permitiu aos russos escrever o roteiro para a investida africana durante a vaga das independências. A União Soviética decide investir num modelo de "guerra fria low cost" em África. Como? Abrindo embaixadas em todos os países africanos, à medida que se vão libertando do colonizador, nas quais estava sempre credenciado um agente do KGB e outro do GRU (Inteligência militar). O investimento é sobretudo feito nestas pessoas, em ações de espionagem e em operações clandestinas, muito mais barato que o lastro de investimentos europeus ao longo de séculos, cuja manutenção também pesava, juntamente com os ainda presentes e famigerados "Acordos de cooperação técnico-militar", que fornece armamento e guarda as peças sobressalentes nos nossos bolsos, para garantir uma dependência perpétua do(s) fornecedor(es) ao longo dos anos. A "Mãe Rússia" da economia centralizada e dos planos quinquenais não tinha "mola", perante os constrangimentos que a ideologia lhe colocava na prática. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), começava a ficar "fora do grande jogo de África".

O Sahel sempre foi um vazio. A propósito, leia Níger , país cujo recente golpe analisaremos à frente, leia dizia, Níger à inglesa e perceberá o desprezo com que toda esta hinterlândia tórrida e inóspita foi brindada, desde o dia primeiro pelo homem branco. Agora, ainda na lógica da leitura à inglesa, faça o mesmo com Nigéria e meia história fica contada!

O Sahel é fisicamente a "língua de areia" que "liga" o Atlântico ao Mar Vermelho e separa a África Saariana da África Subsaariana, a "África branca" da "África negra", a África seca da desertificação da África tropical "das quatro safras de batata por ano civil"!

Como dissemos no início, o Sahel sempre foi um vazio, de tudo. Um vazio de aspirinas, que quando se tem uma dor de dentes não há uma farmácia de serviço mais próxima! Haverá, em local com habitante ilustre um dispensário, quando muito, mas cuja "aspirina" serve para todas as maleitas. O curriculum de um jihadista saheliano à antiga tem lá esta marca. Ou seja, ele começa por ser traficante de aspirinas, mas como o Sahel é um vazio de tudo, rapidamente vê oportunidade nos cigarros e passa a traficante de tabaco, ganhando inclusivamente a alcunha da marca que mais transporta. Daqui às drogas, armas e até, imagine-se, carvão vegetal, tudo é traficável e entrar neste circuito, é entrar no "speakeasy local" dos SMS"s e dos whatsapp"s, o "submundo do segredo" onde se marcam entregas, recolhas, quantidades, a casa de quem tem álcool disponível e a partir de que horas se pode lá passar, sem esquecer o omnipresente adultério. Estar neste ambiente de rede com os pés na areia, é fazer parte do tecido social dos pequenos amontoados populacionais onde todos se ajudam, ou todos morrem! É neste "caldo" e com este percurso de carreira que indivíduos expeditos, sem qualquer registo de hábitos religiosos, rapidamente subiram à chefia da Al-Qaeda do Magrebe Islâmico (AQMI), células e milícias afiliadas, bem como mais tarde na constelação de afiliados ao Estado Islâmico (EI). Porquê? Porque sendo o Sahel um vazio, foi o grande espaço esquecido para onde rumou a "fina flor da Internacional Terrorista islamista", no dia 12 de setembro de 2001, juntamente com a prol de esposas e ninhadas de filhos. Até ao início da Primavera Árabe (2011) proliferaram à vontade, miscigenaram-se com as sociedades locais, mantiveram a "política de casamentos do Profeta", onde o casamento da filha de um chefe local com o filho de um seu rival, os torna em aliados de sangue. Mas também fomentaram a criação de milícias étnicas, onde lhes interessou dividir para reinar.

Enquanto tudo isto acontecia também casaram os seus próprios filhos e filhas, criando novas alianças e reforçando outras.

É este o grau de infeção da Mauritânia ao Chade (Sahel Ocidental), também propício e vulnerável à "desinformação low cost" proporcionada através de um "telefone de bolso". Os jihadistas de cariz islâmico sempre tiveram uma verve anticolonial e anticolonialista, o que preparou na perfeição a chegada dos russos Wagner. Foi este o ambiente que em população dispersa territorial e etnicamente, com códigos de conduta muito peculiares e graus de suserania próprios de sociedades em pirâmide e reféns da "cartilha do sheikh de vão-de-escada", que os russos Wagner se foram instalando no Mali a partir de 2019. Estavam preocupados, estes russos, com este elemento estranho, o "colonizador árabe" que veio reislamizar estes "muçulmanos esquecidos" e com eles erguer o califado antes do de Rakka e depois do de Baghdadi? Claro que não, os russos perceberam o vazio que o Sahel continua a ser, não viram praias paradisíacas, mas viram minas de ouro, pedras preciosas e um caminho para irem no "faro do urânio", mais precioso que os diamantes que lhes pagam as contas!

A Rússia, percebeu outra coisa, que a sua presença serviria de mote à população para pedir a saída dos franceses, dos colonizadores de sempre! Quando um maliano sai para a rua com uma bandeira da Rússia, que lhe custa apenas agarrar numa francesa e de horizontal passar a vertical, que as cores são as mesmas, não está iludido com as boas intenções russas, está radiante por pela primeira vez ter opção de escolha. O que ele está a dizer a si mesmo é "eu não quero este branco, quero este!" Mas porquê, achas que este te vai ajudar? "Eu quero este, porque posso!" Nunca negligenciar o poder do livre arbítrio de um descamisado, que ele sabe que amanhã vai ter que voltar ao trabalho!

Putin e Prigozhin, perceberam tudo isto "antes da letra" e investiram no "low cost" das redes sociais, com um exército de bloggers e publicistas, que inquinaram ainda mais o sentimento antifrancês e antiocidental no Mali (2020) e no Burkina (2021), levando à saída do contingente Barkhane (França) em 2022 e da MINUSMA (Missão ONU) já em 2023, do Mali, com noticiários a assinalarem que os Wagner substituiriam a missão das Nações Unidas no Mali! É neste "mar de desinformação" que a missão dos Wagner vai decorrendo e que tem basicamente três prioridades, um ajuste de contas de décadas com a França, atividade mineira que os sustenta mais as contas do Kremlin e a manutenção das juntas-militares em funções em Bamako e Ouagadougou.

Quanto ao recente golpe do "Verão quente no Níger", obedece às premissas apontadas do caldo social caótico anteriormente apresentado, os problemas de um maliano serão os mesmos de um nigerino, mas este é um golpe à parte da influência russa. Estes tinham aliás colocado uma linha vermelha no Níger, por causa das duas bases de drones americanos no território. O Níger é o maior aliado americano no Sahel, os russos sabem-no e os americanos não vão querer perder este "porta-drones" no coração de uma região infestada por operacionais e simpatizantes jihadistas, cujas movimentações são de "rato-do-deserto" e de monitorização prioritária;

Depois, este golpe foi discreto demais. Até parece que o General Tchiani o tinha na cabeça há anos e só o partilhou quando teve que ser, provavelmente na véspera! O General Tchiani, Chefe da Guarda-Presidencial e líder da revolta, vive isolado no Palácio. Não sai! Tem russos, americanos e europeus a baterem-lhe à porta e não quer abrir porque quer manter o assunto isolado do exterior;

Este golpe é dos nigerinos, demonstrativo também da facilidade com que podem ser feitos a partir de dentro, sem complots internacionais. Começa aqui o grande dossiê chamado segurança, no qual tendemos a pensar a um nível macro. Fronteiras, drones, satélites, quando em terra um homem dá uma ordem e fica tudo do avesso. Neste sentido, o mesmo também aconteceu no Mali e no Burkina, mas tiveram mais luta, a tropa saiu à rua, os russos estavam presentes e ativos, enquanto os populares reciclavam as bandeiras francesas em russas. Houve festa!

Há nove anos, no primeiro de agosto de 2014, François Hollande em visita ao vizinho Chade, apresentou a Operação Barkhane em Njamena, em parceria com o G5-Sahel (Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade). A placa central do Sahel Ocidental tem agora juntas militares à cabeça. Sobram as pontas, Mauritânia (acesso ao Atlântico) e Chade (fronteira com o Sudão em guerra e a sofrer a pressão dos refugiados na fronteira leste)!

O Níger, pelas notícias que chegam, a CEDEAO ameaça intervir militarmente, o Senegal já enviou tropas para reforçar esse contingente, a França e os Estados Unidos da América (EUA) em silêncio e um soundbyte não confirmado que diz que o General Xis apela aos Wagner para que venham em passo acelerado para Niamey resolver o problema, juntamente com o que está em jogo para as potencias em campo, uma mina de urânio (França), duas bases aéreas (drones, EUA), controlo à imigração ilegal (UE) e uma aliado ocidental no coração do inóspito Sahel, podem fazer do Níger um palco de disputas equivalente ao da actual República do Sudão, outra região imperativa em África para a Rússia, já que reforçaria as suas posições no Mar Vermelho, Mar Arábico e Suez. O que é que o Sahel tem? Tem o Mar Vermelho à vista para os russos. E neste sentido, é necessário colocar já a questão. "Quando é que o Chade cai?"

Politólogo/Arabista
www.maghreb-machrek.pt (em reparação)

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