O que é o trumpismo?

A esquerda, depois de quarenta anos de domínio absoluto dos aparelhos de aculturação, faz a cabeça às burguesias domésticas e às direitas moles e acomodadiças, que estremecem de pavor só de pensarem que podem cair no ridículo de parecer menos progressistas ou liberais do que o mainstream
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Na National Review, Victor Davis Hanson dá conta das razões do ódio, do desprezo e do ressentimento contra Trump dos democratas, dos "jornais de referência" e do "Washington to New York Republican Establishment". E sublinha que "o denominador comum" da hostilidade é o "homem-Trump", a pessoa-Trump, mais do que o representante de uma política que também abominam. O rol das invectivas dirige-se essencialmente contra o homem - o seu narcisismo, o seu convencimento, a sua rudeza, a sua franqueza, a sua indiferença às regras do jogo da classe política e da classe artístico-mediática.

O ponto de Hanson é que Trump, embora não se reclame de uma filosofia política, tem pensamento político e convicções políticas. É tradicionalista, populista, nacionalista e nostálgico de uma América que tinha indústrias e fazia coisas - automóveis, aviões, máquinas -, que tirava do chão petróleo, carvão, minerais e que construía estradas e pontes, América essa que quer restaurar. Também não quer uma América que dê lições de moral ou de pedagogia democrática a um mundo que está mais longe do paraíso kantiano dos optimistas globalizantes e mais perto do hobbesiano estado da natureza, com múltiplos e ferozes lobos. Para lidar com eles, quer ressuscitar o big stick de Ted Roosevelt: as task forces do general Mathews são agora o dissuasor necessário e talvez o único respeitado pelos bad guys dos cartéis mexicanos ou das hostes jihadistas.

Estes atributos retiram-lhe, à partida, qualquer simpatia das esquerdas - radicais, médias ou caviar -, mas também parecem incomodar as direitas "civilizadas", tão obcecadas com o homem-Trump que não querem sequer olhar para a sua política nem levar em conta o facto de que, em princípio, vá ser essa a política da primeira potência mundial durante algum tempo.

É verdade que o homem-Trump teve saídas infelizes e até odiosas: agredir um herói como John McCain, que suportou estoicamente o cativeiro nas prisões comunistas do Vietname, arranjar uma polémica com os pais de um oficial americano morto em combate no Médio Oriente; embrenhar-se em questiúnculas sobre se os "ilegais" votaram em maior ou menor número por Hillary ou se teve mais ou menos gente na inauguração que Barack Obama.

Mas o facto é que, nos tempos que correm - e mais nos que aí vêm -, não nos podemos dar ao luxo de ser esquisitos com aqueles que mais se aproximam dos nossos ideais, que os representam ou que menos se afastam deles. Podem não ser, e às vezes não são, as mais estimáveis criaturas do globo, nem as mais próximas dos padrões de respeitabilidade cristã e cívica; serão até seres básicos, contraditórios, com vidas ou passados complicados, só que as escolhas em política são quase sempre escolhas entre dois inconvenientes. É daqui que vem a história do "mal menor", que foi, é e será a triste sina da direita portuguesa - e de outras direitas europeias, condenadas durante muitos anos a opções que vão enfraquecendo a sociedade e o país no seu vagaroso mas inexorável caminho para a decadência.

Ora a eleição de Trump - como antes o brexit - representa uma reacção, talvez não muito estruturada, e com certeza pouco sofisticada, mas apesar de tudo uma reacção contra essa decadência, contra a rendição sem batalha e em nome dos incertos dogmas de duvidosa origem que vieram com o celebrado "fim da história". É uma reacção encabeçada por alguém de quem não se esperaria tal, um multimilionário de Queens, sem formação política ou ideológica, uma "celebridade" com fortuna oriunda do imobiliário e da hotelaria. Difícil de engolir para intelectuais e académicos, mesmo de direita.

Um mês antes das eleições, escreviam os 130 intelectuais e académicos no manifesto de apoio a Trump "Scholars and Writers for America":

Given our choices in the presidential election, we believe that Donald Trump is the candidate most likely to restore the promise of America, and we urge you to support him as we do (Dadas as nossas escolhas para a eleição presidencial, acreditamos que Donald Trump é o candidato com mais hipóteses de restaurar a promessa da América e exortamos todos a apoiá-lo tal como nós o iremos fazer).

Era uma escolha lúcida, clara e realista e envolvendo altos riscos, dado o meio académico e intelectual. A alternativa era Hillary Clinton e o progressismo chique - bilionários da globalização, esquerda caviar e o Lumpen que no dia 20 de Janeiro se entreteve a apedrejar montras em Nova Iorque e Washington.

Está na moda agora contrapor Donald Trump a Ronald Reagan, como faces opostas da mesma moeda. Fá-lo não só a esquerda mas os convertidos ao direitismo que abominavam Reagan antes de ele ser eleito e agora, perante o pérfido Trump, o citam como "herói conservador".

É cómodo, é fácil, é agradável, cai bem nas salas e melhor nos salões. E Reagan, como pessoa, era bem mais estimável que Trump. Como Carter, no seu missionarismo modesto, era melhor do que a sofisticada e experiente Hillary. Mas Reagan não se limitou a ser alvo da guerra dos democratas e de toda a esquerda - para o centro e para a direita bem-pensante a sua eleição foi considerada um "perigo para a humanidade". Que ia levar-nos à guerra e ao holocausto nuclear, que não passava de um anticomunista primário, que era um actor de segunda...

Reagan seria depois a coqueluche dos intelectuais conservadores, os mesmos que o tinham atacado pelas oscilações ideológicas e políticas no governo da Califórnia. Também George H. Bush, antes de ter sido chamado para vice-presidente, ridicularizava a política económica de Reagan a que chamava voodoo Economics.

E por cá também não me esqueço das coisas que ouvi de Reagan quando voltei do exílio. E não eram os esquerdistas ou os comunistas que as diziam.

Hoje acontece o mesmo: a esquerda, depois de 40 anos de domínio absoluto dos aparelhos de aculturação, faz a cabeça às burguesias domésticas e às direitas moles e acomodadiças, que estremecem de pavor só de pensarem que podem cair no ridículo de parecer menos progressistas ou liberais que o mainstream. Não querem ouvir falar em nação nem em valores que não sejam cotados em bolsa e refugiam-se no "intelectualmente correcto", onde as esquerdas inscreveram o "Never Trump" como passaporte para a respeitabilidade política e social.

Talvez as surpresas e os desgostos não lhes fiquem por aqui.

NB: Numa semana, Trump restaurou a boa relação com o Japão de Abe e com o Canadá de Trudeau, tranquilizou Xi Jinping sobre a política de "uma só China" e pôs a Senhora Merkel a dizer que a Alemanha vai passar a gastar mais com a Defesa e com a NATO. Ao mesmo tempo, o seu conselheiro de Segurança, o general Flynn, polémico e considerado um "ultra", pediu a demissão, o que não deixa de ser significativo e interessante.

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