"O que distingue Aparecida é que ela é material e negra"

Entre os santuários da Nossa Senhora da Aparecida e da Fátima há semelhanças: as aparições foram a pessoas desfavorecidas e têm hoje grandes cultos. Contudo, no Brasil, o culto uma variante relevante, que é o facto de ser negra, explica o antropólogo Rosenilton Oliveira, da Universidade de São Paulo
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Qual o significado de Nossa Senhora de Aparecida no contexto religioso brasileiro?

É imensa, principalmente quando a partir de 1930 se torna a padroeira oficial do país e quando a partir de 1980, o 12 de Outubro, data da sua aparição, se torna feriado nacional. Além do facto de o seu santuário ser o maior de todos os cultos marianos do mundo.

O que distingue Nossa Senhora de Aparecida desses outros cultos marianos, como Guadalupe, no México, Lourdes, em França, e Fátima, em Portugal?

O que as une é que as imagens são semelhantes, sempre a imagem de Nossa Senhora da Conceição, e surgiram a pessoas desfavorecidas, como pescadores, índios, pastorinhos. O que Aparecida tem de singular é que, ao contrário das outras, não é uma visão, é material, e não existe mensagem, pelo menos oral. Nos outros três cultos marianos, a Nossa Senhora é uma visão e transmite alguma mensagem a quem a vê. No caso de Aparecida há uma materialidade, e uma materialidade negra, o que no contexto da escravidão daquele tempo, o século XVIII, torna a santa porta-voz dos que não tinham voz, porque os escravos eram vistos não como pessoas mas como coisas.

Num país tão religioso, o facto de a imagem ser negra explica porque foi Aparecida, e não outro símbolo, que se tornou oficial e nacional?

No século XVIII, a escravidão vigorava no Brasil e o facto de a santa aparecer negra aos olhos dos pescadores que a pescaram é interessante. Depois, foram pescadores, ou seja, pessoas desfavorecidas, que a encontraram, tal como em Guadalupe foi a um índio que Nossa Senhora apareceu, em Lourdes a uma menina pobre e em Fátima a três pastorinhos, o que levou a grande devoção à santa por parte dos mais pobres e dos que se sentiam excluídos. Mas a santa encontrada era em simultâneo a imagem de Nossa Senhora da Conceição, a padroeira do império de Portugal, pelo que foi também objeto de devoção das elites da então província de São Paulo, hoje estado de São Paulo. Não nos podemos esquecer ainda que os pescadores pescaram primeiro o corpo, que simbolizaria o povo, e só depois lhe uniram a cabeça, que simbolizaria a elite, a mesma cabeça a que a imperatriz Dona Isabel doou mais tarde uma coroa de diamantes. Finalmente, é uma imagem de Maria, e Maria, em si mesma, já é objeto de devoção forte e universal.

O episódio do "chuto na santa", quando em 1995 um pastor evangélico pontapeou uma réplica de Nossa Senhora de Aparecida, contribuiu para um aumento da sua devoção?

Talvez não, porque esse episódio tem 30 anos e a devoção nessa altura já estava consolidada, mas foi um episódio que revelou aspetos da devoção e contribuiu para um debate muito intenso nos anos 80 e 90 do século passado a propósito do crescimento da população evangélica no país.

O Brasil é um país muito religioso?

O Brasil é um país muito diverso mas ainda é muito cristão: é um país onde 65% da população se diz católica, onde há também 22 milhões de evangélicos representados por influente bancada no Congresso Nacional, há muitos espíritas e religiões de origem africana. Em censo de 2010, as pessoas que se diziam ateias eram muito raras. No entanto, o Estado é laico.

Apesar de terem Aparecida, muitos brasileiros visitam ou sonham viajar para Fátima, porquê?

Pela relação muito próxima entre os dois países, em primeiro lugar, e porque Nossa Senhora do Rosário de Fátima é muito incentivada pela própria Igreja Católica, como quando o Papa João Paulo II apelou à devoção ao rosário, por exemplo.

Em São Paulo

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