O que aprendemos após um ano de vacinação contra a COVID-19?

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"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce"
(Fernando Pessoa, Mensagem, Mar Português)

A administração das vacinas contra a COVID-19 celebrou em Dezembro um ano. Com efeito, a primeira pessoa a ser vacinada foi Margaret Keenan, pelas 06:31 do dia 8 de Dezembro de 2020, na cidade de Conventry no Reino Unido. Uns dias depois essa honra coube à enfermeira Sandra Lindsay, nos Estados Unidos da América (EUA), a 14 de Dezembro e, em Portugal, ao médico infecciologista António Sarmento no Hospital de São João no Porto, a 27 de Dezembro. Em todos estes casos a vacina administrada foi a Comirnaty® (RNA mensageiro) da Pfizer/BioNTech, vacina essa que tinha sido autorizada pela agência norte-americana FDA (Food and Drug Administration) a 11 de Dezembro de 2020 e pela agência europeia EMA (European Medicines Agency) a 21 de Dezembro do mesmo ano. De destacar que estas duas agências são responsáveis pela autorização de todos (sem qualquer excepção) os medicamentos prescritos e utilizados nos respectivos países de jurisdição e de acordo com mecanismos da maior robustez técnico-científica que asseguram a sua eficácia e a sua segurança. O mecanismo de aprovação tem diversas etapas, sendo que a 23 de Agosto de 2021 a FDA concedeu plena e total aprovação para a utilização da vacina Comirnaty® na prevenção da COVID-19 em indivíduos com 16 ou mais anos. De notar que na documentação da FDA, os intervenientes na decisão referiram que também eram pais e filhos, que tinham família e que a sua decisão também se aplicava a eles e aos seus.

Terá afirmado Margaret Keenan, que tinha 90 anos aquando da administração da vacina e que faria 91 anos na semana seguinte, que se tratava da melhor prenda de anos que lhe podiam dar. Assim foi, para Margaret Keenan. Assim foi para a Humanidade no âmbito do combate contra um inimigo implacável, mutável, incansável e até aí aparentemente incontornável. Desde então estima-se que mais de 9 mil milhões de vacinas tenham sido administradas até à data e que diariamente sejam vacinadas mais de 30 milhões de pessoas, sob a égide da maior campanha de vacinação de sempre à escala global, configurando algo que no futuro será relembrada com um dos episódios mais marcantes da história da medicina na sua luta pela salvaguarda da vida humana.

Apesar dos dados disponíveis há quem tenha dúvidas sobre a segurança e a eficácia das vacinas contra a COVID-19. Apontemos, pois, em sede de dados, que se encontram disponíveis nos principais repositórios da comunidade médica e a título de exemplo, um estudo de proporções gigantescas divulgado pelo fidedigno Centers for Disease Control and Prevention dos EUA, a 29 de Outubro de 2021, que envolveu cerca de 11 milhões de pessoas, das quais 6,4 milhões vacinadas e 4,6 milhões não vacinadas com perfis demográficos semelhantes. Nos vacinados incluíram-se 316.000 jovens entre os 12 e os 17 anos. Concluiu o referido estudo que a mortalidade por causas não relacionadas com COVID-19 (exemplo, morte súbita, enfarte, embolia, trombose, acidentes vasculares cerebrais, etc.) foi inferior no grupo vacinado em relação ao não-vacinado. Os dados reforçam a segurança das vacinas e o erro, voluntário ou involuntário, que se procura estabelecer entre causas de morte e estado vacinal. Se se vacinam todos os dias o equivalente a três vezes a população de Portugal, é expectável que todos os dias morra o mesmo número de pessoas e pelos mesmos motivos que morriam antes da pandemia e sem relação com o estado vacinal.

Mortes súbitas, inesperadas e inexplicáveis houve sempre e continuará a haver durante e depois da pandemia.
Em relação à eficácia das vacinas é frequente valorizar-se mais a prevenção da gravidade, traduzida pela necessidade de internamento ou morte. É sem dúvida uma razão determinante para a vacinação, porém não podemos limitar a gravidade a pessoas muito idosas ou vulneráveis com múltiplos factores de risco. O que a COVID-19 nos tem ensinado é que todos estamos em risco, ainda que uns mais do que outros. Não há risco zero para ninguém, mesmo para aqueles que defendem que a COVID-19 pode ser evitada pela força de vontade, estilos de vida e tipo de alimentação ou dieta. Neste desígnio, o SARS-CoV-2 é surpreendentemente democrático, infectando todos sem resquício de discriminação. Além das consequências da infeção aguda, estima-se que pelo menos 10% das pessoas infectadas venham a sofrer da persistência de sinais e sintomas mais de três meses após o diagnóstico inicial. É a condição pós-COVID-19 (também denominada Long Covid) que a Organização Mundial de Saúde reconhece desde Outubro deste ano e que representa um acréscimo de actividade assistencial nos Serviços de Saúde já em sobrecarga.

Incidindo agora o nosso olhar sobre a realidade nacional, de acordo com a Direcção-Geral da Saúde, faleceram, em Novembro deste ano, 300 pessoas com COVID-19, 205 com esquema vacinal completo (com ou sem reforço) e 95 não vacinadas ou com esquema vacinal incompleto. Em termos de taxa de incidência, os 205 reportam a cerca de 8,6 milhões de vacinados, ou seja, 2,4 óbitos por 100.000, e os 95 a cerca de 550.000 não-vacinados ou sem esquema completo, a 17,3 por 100.000. Isto é, a mortalidade nos vacinados foi 7 vezes menor do que nos não-vacinados e sem termos em consideração que os vacinados são mais idosos e com mais comorbilidades e factores de risco.

Mais, se a vacina minora o número de infectados e diminui o período de contágio dos vacinados que se infectam, menos pessoas transmitirão o vírus e durante menos tempo. Ou seja, a vacina tem igualmente um papel significativo na diminuição da transmissão viral na comunidade - como facilmente se constata pela quase ausência de surtos a nível hospitalar entre profissionais de saúde com elevadas taxas de cobertura vacinal ao contrário do que se verificava antes da vacinação.

Para que dúvidas não subsistam, as vacinas não são perfeitas e a imunidade vacinal vai diminuindo com o tempo e com a aparecimento de novas variantes, mas os factos e dados têm amplamente demonstrado que os vacinados infectam-se menos, transmitem menos, adoecem menos e com menor gravidade e morrem menos por COVID-19 e por patologia não-COVID-19. Como bem apontou Margaret Keenan a emergência e administração da vacina contra a mais recente praga monta a uma dádiva da Ciência para a Humanidade. A quem ainda não usufruiu deste presente emanado da Ciência dizemos que é de aproveitar, lembrando que nem todos a ele têm acesso (um bom exemplo reside em Africa onde a taxa de cobertura vacinal anda na ordem dos 6%) e invocando o inolvidável adágio pandémico: ao proteger-se a si protege simultaneamente quem o rodeia. A vacina nasceu e a pandemia, com o empenho de todos, vai perecer.


Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.

Filipe Froes é Pneumologista, Consultor da DGS, Coordenador do Gabinete de Crise para a COVID-19 da Ordem dos Médicos e Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública

Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge

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