O marido acordou morto, e mesmo ela não se estava a sentir lá muito bem. Ficara inconsciente durante seis horas, fruto da agressão brutal de um homem enorme - um "gigante", como o descreveu à polícia -, que lhe entrara em casa naquela madrugada de 20 de Março de 1927. A residência, modesta, ficava num bairro tranquilo de classe média em Queens Village, Long Island, estado de Nova Iorque, e era a morada de Ruth e de Albert Snyder, e da filha do casal, Lorraine, uma menina de 9 anos. Com a ajuda de um cúmplice, o homem enorme e de sotaque estrangeiro entrou na casa, neutralizou Ruth Snyder pela força, estrangulou o marido com um pedaço de fio metálico igual ao usado para pendurar as molduras dos quadros, no fim esmagou-lhe o crânio com o contrapeso de uma janela de guilhotina. De seguida, ele e o comparsa vasculharam as gavetas, deixaram o quarto em pantanas e fugiram com as jóias da senhora Snyder. O crime ficou conhecido como o "homicídio do contrapeso" e foi um dos casos mais célebres da movimentada história judicial da América. Não pela sua especial complexidade ou pela perversidade singular dos seus agentes, mas pelo destaque que mereceu da imprensa sensacionalista, e não só. É um dos melhores exemplos de que, muitas vezes, a realidade é fabricada pelos jornais, que têm o poder imenso de gerar factos - na gíria, "factos noticiosos", como se fossem diferentes dos factos reais - ou de lhes dar uma inusitada dimensão, superior à que merecem. O contexto da época ajudava à afirmação do "quarto poder". Na década de 1920, a imprensa norte-americana teve uma explosão sem precedentes, com as vendas dos jornais a alcançarem os 36 milhões de exemplares por dia, uma média de 1,4 jornais por família. Entre eles, destacavam-se os tablóides inspirados na tradição britânica, com notícias de desporto, mexericos de celebridades e histórias macabras de crimes hediondos: o Daily News era o jornal mais vendido do país, com uma tiragem diária de um milhão de cópias, o dobro do New York Times. Muitas outras publicações procuraram imitar-lhe o sucesso, às vezes para lá de todos os limites do razoável: em 1926, após a morte de Rudolfo Valentino, o Graphic saiu à rua com uma série de peças jornalísticas escritas no túmulo pelo actor falecido....Os mais sensatos ficaram surpreendidos com o alarido suscitado por um crime tão banal e tão estúpido, em que a senhora Snyder e o seu amante e cúmplice foram descobertos e incriminados ao fim de poucos dias. Estranharam os detectives que a filha Lorraine não tivesse acordado com tanta algazarra em casa, no quarto ao lado do seu; um simples exame médico mostrou que Ruth Snyder não tinha quaisquer contusões nem mazelas no corpo em resultado da hipotética agressão de que fora alvo; uma busca sumária detectou as jóias no local óbvio, debaixo do colchão da sua cama; essa cama, onde ela supostamente se encontrava a dormir, não estava sequer desfeita; o co-autor do homicídio foi rapidamente identificado por um taxista de Long Island a quem dera uma gorjeta miserável. Um desastre completo, a incompetência total. Um cronista mais cáustico chamou-lhe "o crime dos imbecis". Ainda assim, e como recorda Bill Bryson no maravilhoso livro Aquele Verão, o caso incendiou paixões nunca vistas e teve mais cobertura mediática do que qualquer outro processo da época, só sendo ultrapassado anos depois, em 1935, pelo famoso rapto do bebé Lindbergh. Ao que parece, o "homicídio do contrapeso" superou mesmo, em volume de notícias, as manchetes do naufrágio do Titanic. No dia em que Ruth Snyder e o seu cúmplice foram levados a tribunal, aguardavam-nos cento e trinta jornalistas, alguns deles oriundos de países distantes como a Noruega. A Western Union instalou no local a maior central telefónica alguma vez construída, maior do que a usada para cobrir as convenções presidenciais ou as finais dos campeonatos de basebol. Na rua, muitos milhares de pessoas, barracas de comes e bebes, vendedores de alfinetes de gravata em forma de contrapeso. No interior do tribunal, nomes sonantes da alta finança e da política, até a marquesa de Queensbury e a mulher de um juiz do Supremo Tribunal, ninguém queria perder o espectáculo. Pelo meio, apareceram na sala de audiências um mágico de nome Thurston e quatro pregadores evangélicos de nomeada, um dos quais, segundo um relato da época, era conhecido por abominar muita coisa: jogos de cartas, bebidas espirituosas, caniches, música jazz, teatro, vestidos curtos, o divórcio, romances, quartos abafados, o boxe profissional, o evolucionismo, os excessos alimentares, o Museu de História Natural de Nova Iorque, o nu artístico, as corridas de lebres, a influência da Standard Oil na Igreja Baptista e a vida privada dos actores de teatro e cinema. De substancial, pouco havia. Os réus tinham confessado os crimes ao fim de pouco tempo, as provas eram esmagadoras e estavam à vista de todos. Havia, pois, que carregar nos pormenores que permitissem dar colorido e sensação a uma história assaz vulgar e insípida. O facto de Ruth Snyder e o seu cúmplice serem amantes deu azo a milhares de notícias, impregnadas de alusões sexuais, e a descoberta de que, na noite do crime, ela envergava um quimono vermelho cor de sangue fez o delírio da imprensa, chegando a ser impressas edições especiais só para divulgar ao mundo tão retumbante achado. Quanto ao mais, pouco a dizer, um caso clássico: Ruth, uma secretária sonhadora e estouvada, era treze anos mais nova do que o marido e aceitara casar ao fim do terceiro ou quarto encontro, quando ele lhe dera um anel de noivado com uma pedra faiscante ("não podia rejeitar aquele anel", confessou a uma amiga). Ele era editor de arte da revista Motor Boating, um homem taciturno que não a fazia feliz e que, para agravar as coisas, não esquecera a paixão pela namorada anterior, já falecida. Recusara-se a tirar da sala as fotografias da antiga amada, baptizou o barco da família com o seu nome, ao fim de dois dias de casada Ruth confessou a Albert que não se sentia atraída por ele. Após dez anos de casamento sem amor, Ruth começou a sair sozinha à noite, conheceu vários homens, acumulou casos sentimentais, alguns meramente carnais. Em 1925, num café de Manhattan, conheceu Judd Gray, caixeiro-viajante de uma empresa de lingerie, a Bien Jolie Corset Company. Com um ar professoral e óculos redondos, casado, pai de uma menina de 10 anos, Gray era um homem exemplar, que dava aulas de catecismo, cantava no coro da igreja e recolhia fundos para a Cruz Vermelha. Por trás dessa fachada, um infiel militante, sempre metido em aventuras com mulheres casadas. Ruth convencera Albert a fazer um seguro de 50 mil dólares a seu favor, que seria duplicado para 100 mil dólares em caso de morte violenta, e desde então tentara assassiná-lo de várias maneiras e feitios. Todas as noites, adicionava veneno ao uísque do marido, e repetia a dose na hora da sobremesa. Como o veneno não se mostrava eficaz, acrescentou pílulas de dormir trituradas ao cocktail e deu-lhe a tomar cloreto de mercúrio em comprimidos com o pretexto de que lhe fazia bem à saúde. Porém, Albert, vá-se lá saber porquê, teimava em não morrer. Às tantas, Ruth chegou a tentar despachá-lo com gás, mas o marido, um desmancha-prazeres, mantinha a obstinação de se manter vivo e saudável. Foi então que a senhora Snyder convenceu o amante a ajudá-la. Engendraram um plano cheio de falhas, simulando um assalto perpetrado por imigrantes estrangeiros subversivos, numa tentativa grosseira de explorar o clamor do caso Sacco e Vanzetti, os anarquistas italianos que aguardavam a execução no estado de Massachusetts. Tudo demasiado óbvio: na mesa da cozinha foi deixado um jornal anarquista italiano, como se os assaltantes, a meio do crime, tivessem decidido fazer uma pausa e ler um bocadinho de doutrina libertária após sovarem a senhora Snyder até deixá-la inconsciente e esmagarem o crânio do seu marido com o contrapeso de uma janela de guilhotina..A imprensa, claro, centrou-se nos detalhes, já que o quadro geral deste crime nada de interessante tinha. Chegou a noticiar-se, o que era verdade, que o juiz-presidente regressava a casa todas as noites para alimentar pessoalmente os seus 125 cães, ou que a idade somada dos jurados perfazia 500 anos, como se isso tivesse alguma relevância para a mais do que previsível condenação de Ruth e do seu amante. Muitas celebridades fizeram intrincadas análises e longos e doutos comentários ao caso; entre elas, a escritora de policiais Mary Roberts Rinehart, o dramaturgo Ben Hecht, o cineasta D. W. Griffith, a actriz Mae West ou o famoso historiador e ensaísta Will Durant, autor de uma História da Filosofia mundialmente célebre, que muitos de nós leram nos tempos do liceu ou nas primícias da faculdade.."Como é frequente, as atenções concentraram-se no elemento feminino do casal homicida, até porque tinha sido ela, ante a tibieza do cúmplice, a dar o golpe fatal na vítima, desfazendo-lhe a cabeça. Para mais, uma vez descoberta tinha tentado culpar inteiramente o amante, fazendo-se passar por mais uma das muitas mulheres ludibriadas por ele. Ruth, uma mulher roliça de 36 anos, com um aspecto macilento e estragado, foi retratada como uma beleza fatal, uma "mulher de gelo", uma "mulher de pedra sem coração", capaz de pérfidas maquinações. Chamaram-lhe de tudo, de "serpente humana" a "vampiro escandinavo". Para que esse retrato fosse convincente, o cúmplice tinha de ser apresentado como mais uma vítima da loira assassina, que esta manipulara através de inconfessáveis, mas decerto escaldantes, requintes de sedução. A esmagadora maioria da opinião pública tomou o partido dele, as cartas de apoio e solidariedade que Judd Gray recebeu na prisão eram de tal modo numerosas que davam para encher duas celas vizinhas, na prisão de Queens Country. "Mas, como nota Bill Bryson, a comoção provocada pelo processo também se prendia com outro facto: naquela época, eram imensos os crimes insolúveis. Um estudo de uma companhia de seguros concluiu que, no ano de 1927, cerca de dois terços dos crimes perpetrados na América tinham ficado por resolver. Em Chicago, com 400 a 500 homicídios por ano, a média das condenações não chegava a um quarto. Dos 372 homicídios registados em Nova Iorque em 1927, em 115 dos casos não foi efectuada qualquer prisão. Outros estudos garantiam que noventa por cento dos crimes graves cometidos na América ficavam impunes. Os jornais e a rádio, a opinião pública, os políticos e os juízes, as polícias, os detectives, todos precisavam de criminosos capturados e condenados. A par da expansão da imprensa naquela época, é também isso que explica o clamor tremendo em torno de um caso corriqueiro de homicídio conjugal. Sendo autores de um crime desprezível, Ruth e o amante acabaram por ser, num certo sentido, vítimas de mais um azar, a fatalidade de terem sido apanhados de forma tão lesta e inequívoca. Um trunfo para o "sistema", que não perdoou.."Os jurados - todos homens, já que nesse tempo as mulheres do estado de Nova Iorque não podiam integrar júris de casos de homicídio - demoraram pouco mais de uma hora a alcançar o veredicto. A leitura da sentença pelo juiz, uma mera formalidade, foi marcada logo para uma semana depois. Previsivelmente, Ruth Brown Snyder e Henry Judd Gray foram condenados à morte por electrocussão. Ao serem transportados para a prisão de Sing Sing, uma multidão imensa acompanhou o cortejo automóvel, houve tumultos e gritaria. E o repórter Tom Howards, do tablóide New York Daily News, graças a um engenhoso dispositivo escondido num tornozelo, conseguiu iludir a proibição de captar imagens dos momentos derradeiros dos condenados à morte. A sua fotografia de Ruth na cadeira eléctrica, editada para ser ainda mais impressionante, foi publicada a toda a largura da primeira página com um título avassalador: "Dead!" O original da fotografia, a primeira de uma execução na cadeira eléctrica, está hoje em Washington, na colecção do Museu Smithsonian de História da América, e faz parte do património visual dos Estados Unidos. Ruth Snyder, que se despediu da vida como Cristo, dizendo "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem", foi enterrada num cemitério do Bronx, com uma lápide que tem apenas escrito "May R." e a data da morte, 13 de Janeiro de 1928. Judd Gray foi executado seis minutos depois dela, também na prisão de Sing Sing. Como é frequente, houve intermináveis disputas judiciais pela custódia da filha Lorraine (e da indemnização milionária que recebera), envolvendo familiares do lado paterno e materno da menina, que só um ano depois do caso soube que os pais estavam mortos, ainda que desconhecendo as causas dessa tragédia. É espantoso que um homicídio tão tosco tenha sido considerado o "crime do século", como espantoso é o legado cultural que deixou na América e, por via dela, no mundo inteiro. Adolf Zukor produziu um filme com o título The Woman Who Need Killing, a jornalista Sophie Treadwell, que acompanhou o caso, escreveu uma peça de sucesso, Machinal, em que entrou um jovem e desconhecido actor chamado Clark Gable, o romancista James M. Cain fez da história o tema de dois dos seus livros, O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes e Double Indemnity, ambos adaptados ao cinema: o primeiro foi alvo de sete versões cinematográficas, a mais conhecida das quais baseada numa peça de David Mamet, que Bob Rafelson levou à tela com Jack Nicholson e Jessica Lange nos principais papéis; Double Indemnity, uma alusão à indemnização em dobro por morte violenta de Albert Snyder, deu um filme de 1944, realizado por Billy Wilder, com argumento do grande Raymond Chandler. Em 1991, os Guns N"Roses usaram a fotografia de Ruth Snyder na cadeira eléctrica para a promoção de um dos seus álbuns e, mais recentemente, em 2011, Ron Hansen escreveu uma novela a partir do caso Snyder-Graddy. O responsável pelas execuções na cadeira eléctrica do estado de Nova Iorque tinha um nome bizarro, New York State Electrician. Naquela época, o cargo era exercido por Robert Elliott, a quem se atribuem 387 mortes. Além de Ruth Snyder e do amante, foi ele quem coordenou a execução de Sacco e Vanzetti e de Bruno Hauptmann, o raptor do bebé Lindbergh. Um bom pai de família que gostava de cuidar das flores do seu jardim, Elliott disse nas suas memórias ser adversário figadal da pena de morte, sonhando com o dia em que ela fosse abolida por completo na América. Um dia que, infelizmente, tarda em chegar - e que, pior ainda, parece agora cada vez mais distante..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia
O marido acordou morto, e mesmo ela não se estava a sentir lá muito bem. Ficara inconsciente durante seis horas, fruto da agressão brutal de um homem enorme - um "gigante", como o descreveu à polícia -, que lhe entrara em casa naquela madrugada de 20 de Março de 1927. A residência, modesta, ficava num bairro tranquilo de classe média em Queens Village, Long Island, estado de Nova Iorque, e era a morada de Ruth e de Albert Snyder, e da filha do casal, Lorraine, uma menina de 9 anos. Com a ajuda de um cúmplice, o homem enorme e de sotaque estrangeiro entrou na casa, neutralizou Ruth Snyder pela força, estrangulou o marido com um pedaço de fio metálico igual ao usado para pendurar as molduras dos quadros, no fim esmagou-lhe o crânio com o contrapeso de uma janela de guilhotina. De seguida, ele e o comparsa vasculharam as gavetas, deixaram o quarto em pantanas e fugiram com as jóias da senhora Snyder. O crime ficou conhecido como o "homicídio do contrapeso" e foi um dos casos mais célebres da movimentada história judicial da América. Não pela sua especial complexidade ou pela perversidade singular dos seus agentes, mas pelo destaque que mereceu da imprensa sensacionalista, e não só. É um dos melhores exemplos de que, muitas vezes, a realidade é fabricada pelos jornais, que têm o poder imenso de gerar factos - na gíria, "factos noticiosos", como se fossem diferentes dos factos reais - ou de lhes dar uma inusitada dimensão, superior à que merecem. O contexto da época ajudava à afirmação do "quarto poder". Na década de 1920, a imprensa norte-americana teve uma explosão sem precedentes, com as vendas dos jornais a alcançarem os 36 milhões de exemplares por dia, uma média de 1,4 jornais por família. Entre eles, destacavam-se os tablóides inspirados na tradição britânica, com notícias de desporto, mexericos de celebridades e histórias macabras de crimes hediondos: o Daily News era o jornal mais vendido do país, com uma tiragem diária de um milhão de cópias, o dobro do New York Times. Muitas outras publicações procuraram imitar-lhe o sucesso, às vezes para lá de todos os limites do razoável: em 1926, após a morte de Rudolfo Valentino, o Graphic saiu à rua com uma série de peças jornalísticas escritas no túmulo pelo actor falecido....Os mais sensatos ficaram surpreendidos com o alarido suscitado por um crime tão banal e tão estúpido, em que a senhora Snyder e o seu amante e cúmplice foram descobertos e incriminados ao fim de poucos dias. Estranharam os detectives que a filha Lorraine não tivesse acordado com tanta algazarra em casa, no quarto ao lado do seu; um simples exame médico mostrou que Ruth Snyder não tinha quaisquer contusões nem mazelas no corpo em resultado da hipotética agressão de que fora alvo; uma busca sumária detectou as jóias no local óbvio, debaixo do colchão da sua cama; essa cama, onde ela supostamente se encontrava a dormir, não estava sequer desfeita; o co-autor do homicídio foi rapidamente identificado por um taxista de Long Island a quem dera uma gorjeta miserável. Um desastre completo, a incompetência total. Um cronista mais cáustico chamou-lhe "o crime dos imbecis". Ainda assim, e como recorda Bill Bryson no maravilhoso livro Aquele Verão, o caso incendiou paixões nunca vistas e teve mais cobertura mediática do que qualquer outro processo da época, só sendo ultrapassado anos depois, em 1935, pelo famoso rapto do bebé Lindbergh. Ao que parece, o "homicídio do contrapeso" superou mesmo, em volume de notícias, as manchetes do naufrágio do Titanic. No dia em que Ruth Snyder e o seu cúmplice foram levados a tribunal, aguardavam-nos cento e trinta jornalistas, alguns deles oriundos de países distantes como a Noruega. A Western Union instalou no local a maior central telefónica alguma vez construída, maior do que a usada para cobrir as convenções presidenciais ou as finais dos campeonatos de basebol. Na rua, muitos milhares de pessoas, barracas de comes e bebes, vendedores de alfinetes de gravata em forma de contrapeso. No interior do tribunal, nomes sonantes da alta finança e da política, até a marquesa de Queensbury e a mulher de um juiz do Supremo Tribunal, ninguém queria perder o espectáculo. Pelo meio, apareceram na sala de audiências um mágico de nome Thurston e quatro pregadores evangélicos de nomeada, um dos quais, segundo um relato da época, era conhecido por abominar muita coisa: jogos de cartas, bebidas espirituosas, caniches, música jazz, teatro, vestidos curtos, o divórcio, romances, quartos abafados, o boxe profissional, o evolucionismo, os excessos alimentares, o Museu de História Natural de Nova Iorque, o nu artístico, as corridas de lebres, a influência da Standard Oil na Igreja Baptista e a vida privada dos actores de teatro e cinema. De substancial, pouco havia. Os réus tinham confessado os crimes ao fim de pouco tempo, as provas eram esmagadoras e estavam à vista de todos. Havia, pois, que carregar nos pormenores que permitissem dar colorido e sensação a uma história assaz vulgar e insípida. O facto de Ruth Snyder e o seu cúmplice serem amantes deu azo a milhares de notícias, impregnadas de alusões sexuais, e a descoberta de que, na noite do crime, ela envergava um quimono vermelho cor de sangue fez o delírio da imprensa, chegando a ser impressas edições especiais só para divulgar ao mundo tão retumbante achado. Quanto ao mais, pouco a dizer, um caso clássico: Ruth, uma secretária sonhadora e estouvada, era treze anos mais nova do que o marido e aceitara casar ao fim do terceiro ou quarto encontro, quando ele lhe dera um anel de noivado com uma pedra faiscante ("não podia rejeitar aquele anel", confessou a uma amiga). Ele era editor de arte da revista Motor Boating, um homem taciturno que não a fazia feliz e que, para agravar as coisas, não esquecera a paixão pela namorada anterior, já falecida. Recusara-se a tirar da sala as fotografias da antiga amada, baptizou o barco da família com o seu nome, ao fim de dois dias de casada Ruth confessou a Albert que não se sentia atraída por ele. Após dez anos de casamento sem amor, Ruth começou a sair sozinha à noite, conheceu vários homens, acumulou casos sentimentais, alguns meramente carnais. Em 1925, num café de Manhattan, conheceu Judd Gray, caixeiro-viajante de uma empresa de lingerie, a Bien Jolie Corset Company. Com um ar professoral e óculos redondos, casado, pai de uma menina de 10 anos, Gray era um homem exemplar, que dava aulas de catecismo, cantava no coro da igreja e recolhia fundos para a Cruz Vermelha. Por trás dessa fachada, um infiel militante, sempre metido em aventuras com mulheres casadas. Ruth convencera Albert a fazer um seguro de 50 mil dólares a seu favor, que seria duplicado para 100 mil dólares em caso de morte violenta, e desde então tentara assassiná-lo de várias maneiras e feitios. Todas as noites, adicionava veneno ao uísque do marido, e repetia a dose na hora da sobremesa. Como o veneno não se mostrava eficaz, acrescentou pílulas de dormir trituradas ao cocktail e deu-lhe a tomar cloreto de mercúrio em comprimidos com o pretexto de que lhe fazia bem à saúde. Porém, Albert, vá-se lá saber porquê, teimava em não morrer. Às tantas, Ruth chegou a tentar despachá-lo com gás, mas o marido, um desmancha-prazeres, mantinha a obstinação de se manter vivo e saudável. Foi então que a senhora Snyder convenceu o amante a ajudá-la. Engendraram um plano cheio de falhas, simulando um assalto perpetrado por imigrantes estrangeiros subversivos, numa tentativa grosseira de explorar o clamor do caso Sacco e Vanzetti, os anarquistas italianos que aguardavam a execução no estado de Massachusetts. Tudo demasiado óbvio: na mesa da cozinha foi deixado um jornal anarquista italiano, como se os assaltantes, a meio do crime, tivessem decidido fazer uma pausa e ler um bocadinho de doutrina libertária após sovarem a senhora Snyder até deixá-la inconsciente e esmagarem o crânio do seu marido com o contrapeso de uma janela de guilhotina..A imprensa, claro, centrou-se nos detalhes, já que o quadro geral deste crime nada de interessante tinha. Chegou a noticiar-se, o que era verdade, que o juiz-presidente regressava a casa todas as noites para alimentar pessoalmente os seus 125 cães, ou que a idade somada dos jurados perfazia 500 anos, como se isso tivesse alguma relevância para a mais do que previsível condenação de Ruth e do seu amante. Muitas celebridades fizeram intrincadas análises e longos e doutos comentários ao caso; entre elas, a escritora de policiais Mary Roberts Rinehart, o dramaturgo Ben Hecht, o cineasta D. W. Griffith, a actriz Mae West ou o famoso historiador e ensaísta Will Durant, autor de uma História da Filosofia mundialmente célebre, que muitos de nós leram nos tempos do liceu ou nas primícias da faculdade.."Como é frequente, as atenções concentraram-se no elemento feminino do casal homicida, até porque tinha sido ela, ante a tibieza do cúmplice, a dar o golpe fatal na vítima, desfazendo-lhe a cabeça. Para mais, uma vez descoberta tinha tentado culpar inteiramente o amante, fazendo-se passar por mais uma das muitas mulheres ludibriadas por ele. Ruth, uma mulher roliça de 36 anos, com um aspecto macilento e estragado, foi retratada como uma beleza fatal, uma "mulher de gelo", uma "mulher de pedra sem coração", capaz de pérfidas maquinações. Chamaram-lhe de tudo, de "serpente humana" a "vampiro escandinavo". Para que esse retrato fosse convincente, o cúmplice tinha de ser apresentado como mais uma vítima da loira assassina, que esta manipulara através de inconfessáveis, mas decerto escaldantes, requintes de sedução. A esmagadora maioria da opinião pública tomou o partido dele, as cartas de apoio e solidariedade que Judd Gray recebeu na prisão eram de tal modo numerosas que davam para encher duas celas vizinhas, na prisão de Queens Country. "Mas, como nota Bill Bryson, a comoção provocada pelo processo também se prendia com outro facto: naquela época, eram imensos os crimes insolúveis. Um estudo de uma companhia de seguros concluiu que, no ano de 1927, cerca de dois terços dos crimes perpetrados na América tinham ficado por resolver. Em Chicago, com 400 a 500 homicídios por ano, a média das condenações não chegava a um quarto. Dos 372 homicídios registados em Nova Iorque em 1927, em 115 dos casos não foi efectuada qualquer prisão. Outros estudos garantiam que noventa por cento dos crimes graves cometidos na América ficavam impunes. Os jornais e a rádio, a opinião pública, os políticos e os juízes, as polícias, os detectives, todos precisavam de criminosos capturados e condenados. A par da expansão da imprensa naquela época, é também isso que explica o clamor tremendo em torno de um caso corriqueiro de homicídio conjugal. Sendo autores de um crime desprezível, Ruth e o amante acabaram por ser, num certo sentido, vítimas de mais um azar, a fatalidade de terem sido apanhados de forma tão lesta e inequívoca. Um trunfo para o "sistema", que não perdoou.."Os jurados - todos homens, já que nesse tempo as mulheres do estado de Nova Iorque não podiam integrar júris de casos de homicídio - demoraram pouco mais de uma hora a alcançar o veredicto. A leitura da sentença pelo juiz, uma mera formalidade, foi marcada logo para uma semana depois. Previsivelmente, Ruth Brown Snyder e Henry Judd Gray foram condenados à morte por electrocussão. Ao serem transportados para a prisão de Sing Sing, uma multidão imensa acompanhou o cortejo automóvel, houve tumultos e gritaria. E o repórter Tom Howards, do tablóide New York Daily News, graças a um engenhoso dispositivo escondido num tornozelo, conseguiu iludir a proibição de captar imagens dos momentos derradeiros dos condenados à morte. A sua fotografia de Ruth na cadeira eléctrica, editada para ser ainda mais impressionante, foi publicada a toda a largura da primeira página com um título avassalador: "Dead!" O original da fotografia, a primeira de uma execução na cadeira eléctrica, está hoje em Washington, na colecção do Museu Smithsonian de História da América, e faz parte do património visual dos Estados Unidos. Ruth Snyder, que se despediu da vida como Cristo, dizendo "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem", foi enterrada num cemitério do Bronx, com uma lápide que tem apenas escrito "May R." e a data da morte, 13 de Janeiro de 1928. Judd Gray foi executado seis minutos depois dela, também na prisão de Sing Sing. Como é frequente, houve intermináveis disputas judiciais pela custódia da filha Lorraine (e da indemnização milionária que recebera), envolvendo familiares do lado paterno e materno da menina, que só um ano depois do caso soube que os pais estavam mortos, ainda que desconhecendo as causas dessa tragédia. É espantoso que um homicídio tão tosco tenha sido considerado o "crime do século", como espantoso é o legado cultural que deixou na América e, por via dela, no mundo inteiro. Adolf Zukor produziu um filme com o título The Woman Who Need Killing, a jornalista Sophie Treadwell, que acompanhou o caso, escreveu uma peça de sucesso, Machinal, em que entrou um jovem e desconhecido actor chamado Clark Gable, o romancista James M. Cain fez da história o tema de dois dos seus livros, O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes e Double Indemnity, ambos adaptados ao cinema: o primeiro foi alvo de sete versões cinematográficas, a mais conhecida das quais baseada numa peça de David Mamet, que Bob Rafelson levou à tela com Jack Nicholson e Jessica Lange nos principais papéis; Double Indemnity, uma alusão à indemnização em dobro por morte violenta de Albert Snyder, deu um filme de 1944, realizado por Billy Wilder, com argumento do grande Raymond Chandler. Em 1991, os Guns N"Roses usaram a fotografia de Ruth Snyder na cadeira eléctrica para a promoção de um dos seus álbuns e, mais recentemente, em 2011, Ron Hansen escreveu uma novela a partir do caso Snyder-Graddy. O responsável pelas execuções na cadeira eléctrica do estado de Nova Iorque tinha um nome bizarro, New York State Electrician. Naquela época, o cargo era exercido por Robert Elliott, a quem se atribuem 387 mortes. Além de Ruth Snyder e do amante, foi ele quem coordenou a execução de Sacco e Vanzetti e de Bruno Hauptmann, o raptor do bebé Lindbergh. Um bom pai de família que gostava de cuidar das flores do seu jardim, Elliott disse nas suas memórias ser adversário figadal da pena de morte, sonhando com o dia em que ela fosse abolida por completo na América. Um dia que, infelizmente, tarda em chegar - e que, pior ainda, parece agora cada vez mais distante..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia