O quarto novo da Vanda e a casa vazia do Ventura

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\t\tA Vanda tem um quarto novo. É branco e iluminado pelo sol, no apartamento de um prédio social acabado de construir. No quarto novo da Vanda aparece às vezes o pai, o Ventura. O Ventura é, ao mesmo tempo, o protagonista e o guia de Juventude em Marcha , o novo filme de Pedro Costa (em competição), e o símbolo e a memória do agora demolido bairro das Fontainhas.


O Ventura também tem uma casa nova em folha no bairro social. Mas a casa está vazia, porque a mulher, a Clotilde, deixou-o depois de deitar todo o recheio da barraca janela fora, e de o ter ferido numa mão à facada. Por isso, o Ventura não tem nem móveis nem roupa na casa nova. Nem a família. Por isso, quer uma casa maior, e anda a visitar os filhos, os seus e os que não são seus, embora pudessem ter sido.


Em Juventude em Marcha , Pedro Costa volta a entrar no micromundo da comunidade cabo-verdiana das Fontainhas, tal como havia feito em Ossos , embora de forma mais ficcional e narrativa, e depois em No Quarto da Vanda , embora em registo mais documental. Estes dois filmes desaguam em Juventude em Marcha , que é a consequência natural, tecnicamente mais despojada e "refinada", e também mais calorosamente humana, daqueles dois filmes.
Aqui, Pedro Costa reduziu a equipa de filmagem ao mínimo, para se abrir ao máximo aos protagonistas e deixá-los circular e contar as suas histórias, sobretudo o Ventura. Muito mais do que em Ossos , e mais do que em No Quarto da Vanda , também por causa da confiança e da intimidade conquistadas após anos de contacto, Costa é realizador mas igualmente espectador em Juventude em Marcha - está a filmar mas também está a ver, ouvir e sentir como nunca fez até agora.


Goste-se ou não, recuse-se em bloco ou aceite-se sem objecções, o cinema de Pedro Costa tem uma coerência, uma coesão, uma ideia orientadora e uma devoção aos temas, lugares e personagens marcadamente únicas. É um cinema de artesão, daqueles que podem estar um tempo perdido a trabalhar uma peça, porque é assim que acham que deve ser. É um cinema ao contrário do actual, porque como disse Pedro Costa na conferência de imprensa, "perde tempo, anda devagar, pode até parar para se ficar a conversar". É um cinema em que tempo e o espaço - o do filme e o da rodagem - são diferentes do tempo e do espaço de existência e de trabalho de quase todos os outros filmes.


É ainda um cinema de resistência, porque resiste à maneira como hoje se faz cinema em toda a parte, resiste a ser etiquetado, resiste a uma percepção imediata, confortável e reconfortante, resiste a uma aceitação consensual, e exige do espectador a resistência e o esforço equivalentes à subida de um penhasco ou à descida a uma caverna. O cinema português está cheio de autores falsos e autoproclamados. Resistências, elogios e execrações à parte, Pedro Costa demonstra ser o artigo genuino.


Surpresa caseira


No último filme francês da competição, Quand j'étais Chanteur , de Xavier Giannoli, Gérard Depardieu interpreta Alain Moreau, um veterano cantor de baile da França profunda, com uma tal justeza de sentimentos e uma tão imediata veracidade na caracterização, que se passou logo a falar dele para o prémio de Melhor Actor. Giannoli não quer caramelizar, caricaturar ou passar ao crivo "pós-moderno" da celebração kitsch , a personagem e o seu mundo de concertos em casinos, salas de baile, termas e discotecas da província. Por isso, o filme, tal como as canções sobre os sobressaltos do amor, fala verdade sobre ambos.

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