O quarto homem do 'Requiem' 'escondia-se' no Rio de Janeiro
O que tem o Requiem de Mozart a ver com viagens transatlânticas? Segundo o maestro e musicólogo francês Jean-Claude Malgoire, tem e muito, porque foi no Novo Mundo que a obra terá sido concluída, quase 30 anos após a morte do compositor. Concluída? Então o Requiem não foi terminado por (J. Eybler e) F.X. Süssmayr logo em 1792?
Diz Malgoire que o final da obra nunca o satisfez, com aquela conclusão tão breve no quia pius es após a imponente fuga em Cum sanctis tuis retomada do Kyrie a dar um final fraco à obra. Para mais, afirma, uma vez que a obra, tal como encomendada pelo conde Walsegg-Stuppach, não era destinada a uma missa de defuntos de corpo presente, mas antes à memória da sua falecida mulher, então o Requiem deveria concluir com um Libera me harmonizado para coro e orquestra (em vez do cantochão, habitual no outro contexto).
É por conseguinte enquanto intérprete especializado e musicólogo atento às práticas de execução coevas, que Malgoire decidiu fazer a 1.ª gravação mundial do Requiem de Mozart acrescido do Libera me de Sigismund Neukomm como possível alternativa de conclusão da obra.
Neukomm (1778-1958), prolífico compositor natural de Salzburgo, foi aí aluno de Michael Haydn, depois professor de Franz Xaver Wolfgang Mozart (segundo filho de Mozart, nascido em 1791) e privou de perto com Joseph Haydn de 1797 a 1801, período durante o qual terá ouvido o Requiem e ficado imbuído do culto mozartiano e da aura que já então rodeava essa obra. De vida aventurosa, chega em 1816 ao Rio de Janeiro, capital do Império Português desde 1808, quando ali se instalara D. João VI e quase toda a intelligentsia portuguesa da época. No Rio, onde permanecerá até 1821, conhece o Pe. José Maurício (1767-1830), a maior figura da música brasileira da sua época. Este, decerto conhecedor do Requiem de Mozart (vide semelhanças da Missa de Defuntos que escreveu para as cerimónias fúnebres de D. Maria I, falecida a 20 de Março de 1816...), instou Neukomm a montarem juntos a obra para o que seria a sua estreia americana - entretanto, em 1817 chega de Viena a princesa Leopoldina, filha de Francisco I, para casar com D. Pedro IV (com a influência cultural que isso terá acarretado...). O acontecimento dá-se a 19 de Dezembro de 1819, no quadro da tradicional missa da Irmandade de Santa Cecília (de cujo ramo brasileiro Maurício fôra fundador, em 1784), em memória dos membros falecidos nesse ano, ocasião em que também se tocou uns 'Notturni de defuntos' de David Perez.
Terá sido para esse efeito (ou para qualquer execução posterior) que Neukomm compôs este Libera me para concluir o Requiem de Mozart.
Descoberto e gravado, é ouvi-lo.