Há uma clara linha de desentendimento entre o PS e o BE que está a enfraquecer a resposta política à situação económica provocada pela pandemia. Trata-se da participação de Portugal no euro e das consequências que isso tem para a governação do país. Esse desentendimento saltou recentemente à vista com o episódio do dinheiro transferido para o Novo Banco e a informação errada que inadvertidamente o primeiro-ministro deu no Parlamento. É verdade que a venda daquele banco está a mostrar-se ruinosa para os cofres públicos e que aquilo que lá se passa não se devia passar. É também certo que a venda foi decidida no primeiro mandato de António Costa, com Mário Centeno já na pasta das Finanças, mas é também preciso relembrar a circunstância da imposição do Banco Central Europeu (BCE)..Já menos certas são duas coisas. A primeira, é a de que Portugal estaria melhor fora do euro. É uma pergunta de quase impossível resposta, uma vez que implica a construção de um cenário alternativo, de um país com uma moeda própria, necessariamente frágil, num contexto de uma união monetária forte e de outros países, igualmente fortes, que virtualmente indexaram as suas moedas ao euro. A segunda incerteza é saber qual seria o papel do banco central português fora do eurossistema. Seria muito diferente?.A minha resposta, apenas baseada na observação superficial do que se passa em outras economias fracas da Europa de Leste, fora do euro, é que o Banco de Portugal (BdP), tal como está hoje, daria ainda mais dores de cabeça ao Bloco de Esquerda - e aos cidadãos. Recordemos, por exemplo, que os aforradores húngaros foram aconselhados pela respetiva autoridade monetária a realizar empréstimos em euros, sobre os quais tiveram de pagar elevadas faturas quando a moeda nacional se desvalorizou. Recordemos também que a Roménia, igualmente fora do euro, seguiu políticas de austeridade (e agora já todos devemos saber o que isso é, espera-se) tão ou mais gravosas do que as seguidas em Portugal, no tempo de Passos Coelho, tendo como mentor principal das mesmas o banco central do país..Estas reflexões surgem numa altura em que o Governo terá de escolher um novo governador para o BdP. Ora, uma vez que interessará também ao PS ter um Governo forte para combater a má situação económica em que já estamos, talvez fosse ocasião de restabelecer uma ponte com o BE, num assunto tão importante. Pelo meio, o PS, não o Governo, pois este não o pode fazer, deveria juntar vozes autorizadas ao coro que está justamente escandalizado com o que se passa no Novo Banco. Por muito que o Estado esteja preso a contratos que tem obrigatoriamente de respeitar, poucos acreditarão que não haverá forma de amenizar o que por lá se passa..Voltando ao BdP, uma coisa é cada vez mais certa, à escala europeia. Trata-se do facto de estarmos longe da fase em que era visto como crucial que os bancos centrais fossem independentes dos governos, pois só isso lhes permitiria ter força suficiente para controlar a inflação. Com a inflação europeia baixa, graças sobretudo aos baixos salários de outras partes do mundo, trazidos pela globalização, e graças à redução do poder negocial dos sindicatos nacionais, os bancos centrais são agora sobretudo fortíssimas fontes de política monetária com grandes implicações na economia. O que fazem é comprar títulos do Estado ou de empresas, a troco de moeda, injetando assim doses massivas e necessárias de liquidez em economias com problemas de procura agregada. Isto teria de ser mais bem explicado, mas há muitos lugares onde procurar essa explicação, para quem estiver interessado..O que interessa mesmo sublinhar aqui, é que os bancos centrais tornaram-se um dos principais instrumentos de política económica do mundo industrializado. Assim, evidentemente, não podem estar totalmente de fora do arco da governação, tendo de responder perante a política e o Parlamento, tal como fazem o Tesouro ou o Ministério das Finanças. Certo que o BdP é apenas um dos bancos do sistema monetário europeu, com o BCE à cabeça. Mas não perdeu toda a importância, até porque (e as coisas, como se viu, estão ligadas) é o agente financeiro regulador, no espaço nacional..Sendo assim, o novo governador deveria ser alguém que compreende o atual papel dos bancos centrais e que não esteja comprometido com a história recente da instituição. E deve ser alguém com força política, ciente do que deve ser feito no futuro, em matéria de política monetária, e não um tecnocrata de lições aprendidas nos anos 1990. E, quem sabe, uma mulher, o que ajudaria seguramente a quebrar a tradição, tal como é desejável. Existe tal pessoa? Claro que existe. Seria um sacrifício pessoal, pois o trabalho não será fácil - nem facilitado, por dentro ou fora da instituição. Mas Portugal precisa mesmo de mais e melhor governação, em todas as vertentes..Investigador da Universidade de Lisboa. (pedrolains.typepad.com)