"O problema é se se cria uma cultura de vida ou de descarte"
O bispo José Ornelas tem consciência de que terá uns 6%, talvez 8%, de praticantes, numa diocese "com mais de 50% de batizados". "Isto significa que é uma Igreja que não pode estar voltada só para si, porque senão é uma Igreja que vai ficando cada vez mais residual."
Até que ponto a proposta de Francisco de mudança se vive no dia-a-dia de uma diocese como a de Setúbal?
É um desafio todos os dias. Não está feito. Eu sabia muito bem o que era ser bispo de Setúbal, antes de chegar cá. Agora já me sinto, assim, um bocado mais atrapalhado [risos]. Primeiro, é uma diocese que se está a construir e, portanto, estamos a fazê--la. Segundo, tem uma história bonita. D. Manuel e D. Gilberto foram homens bastante informais, gente simples, a viver com a gente daqui. Mas isto é precisamente o estilo do Papa Francisco. É também o meu estilo, na forma de ver e de criar uma Igreja.
Sempre foi uma diocese com fragilidades sociais grandes e com impactos muito fortes em tempos de crise.
Muito fortes. Porque todas as crises, aqui, tiveram um impacto muito especial, pelas próprias características económicas e sociais da diocese. Tivemos aqui as crises sucessivas das grandes indústrias - a siderurgia, a indústria química, a naval, etc. E tudo isto [deu origem aos] bairros que surgiram, com emigração interna e externa, que depois entraram em crise muito forte, de desemprego e tudo o resto. A última crise também se sentiu - e continua a sentir-se muito fortemente. Mas alguma coisa está melhorando. O passo que temos de dar é, nesta sociedade, não substituir-nos ao Estado mas sermos seus complementos e encontrar formas de sinergia.
Qual é que acha que deve ser o papel da Igreja no debate da eutanásia? Se é um papel de uma intervenção direta ou de uma orientação?
Eu não gosto de fazer essa distinção, porque é assim: eu, concretamente (e isso deve ser a orientação da Igreja), acho que a questão da vida é fundamental, uma questão básica. Não é porque eu tenha gosto no sofrimento, mas faz parte da minha vida. Se eu não sofrer para buscar uma solução, não funciona. Isto não significa nada, não é uma priorização das coisas. Agora, eu não quero mandar ninguém para a cadeia. O problema não é mandar ninguém para a cadeia - é se se cria uma cultura de vida ou se se cria uma cultura de descarte. É por fidelidade à defesa da vida, da vida em todos os seus estados. E quando uma pessoa está doente - e hoje temos meios para ajudar. Não estou a dizer com isto que é fácil resolver os problemas de uma pessoa que sofre...
Mas há situações-limite em que essa vida é quase impossível, em que há uma impossibilidade de vida.
Quem diz? Quem diz? Isso é como a seleção das crianças. Enquanto uma pessoa me pede coisas, eu tenho o dever de ajudar esta pessoa a viver também. E o que é que a Igreja faz? Antes de mais, entender e esclarecer. E é isto que tem feito. Sabe o que é que eu gostaria de ver? Uma lei que dissesse assim: "Nós não aceitamos a eutanásia, mas eu não vou mandar ninguém para a cadeia por causa disso." Agora, eu nunca vou aceitar a eutanásia como solução.
Na questão dos recasados na Igreja, o Papa colocou muito o acento tónico no acolhimento das pessoas que estavam nessa situação.
Nós aqui também, na diocese, o que estamos a tentar é precisamente isso, o acolhimento dessas pessoas. Mas o Papa também diz: o padre e o casal que tenham em conta, quando fazem isto, de educar a própria comunidade. Não ferir a comunidade. Mas estamos todos a dizer mais ou menos o mesmo.
A intimidade de um casal não deve ser uma construção desse casal?
É só deles, sim. Podemos falar dessas coisas todas, mas a vida deles é deles. E o Papa, nisso, é muito claro. Também do ponto de vista moral, a última responsabilidade só a pessoa tem. Eu posso ajudar um casal, mas o último responsável da decisão é o casal.