O problema dos esquimós

A criança alegre de outrora deu lugar a um jovem adulto triste e sombrio, mergulhado na solidão de si mesmo.
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Em Agosto de 1897, o comandante Robert Peary regressou à Gronelândia. Era a sua quarta expedição polar, numa jornada obsessiva iniciada seis anos antes. Nesse período, Peary chegara a viver uma larga temporada nos glaciares e, para espanto dos seus compatriotas, levara até a mulher para aquelas terras árticas. A filha nascera lá, tratavam-na por "Snow Baby".

Os esquimós do tempo de Peary eram muito diferentes dos que, décadas antes, tinham sido encontrados pelos primeiros ocidentais que alcançaram o Norte extremo. Nessa altura, os esquimós da Gronelândia desconheciam o arco e a flecha, sendo incapazes de caçar os caribus que aí abundavam. Não tinham madeira, salvo uns troncos de árvores que por vezes vinham do mar, sendo por isso obrigados a fabricar as suas armas a partir de dentes de narval ou dos ossos dos ursos e das baleias. Como é óbvio, ficaram boquiabertos quando viram os primeiros navios, todos feitos de madeira, o material precioso. Estranhamente, já tinham utensílios de ferro, feitos a partir de uma fonte local de minério: três meteoritos que, há muitos e muitos anos, tinham caído na extremidade norte de Melville Bay.

Na sua viagem de 1897, o comandante Peary pretendeu levar os meteoritos para a América. Carregou-os a bordo, privando os esquimós da sua mina de ferro. E trouxe também consigo seis esquimós, que aceitaram fazer a viagem na promessa de que ela seria breve e que dentro de pouco tempo regressariam a casa.

Ao chegarem a Nova Iorque, a loucura total. No primeiro dia, 20 mil pessoas apinharam-se no cais para ver os meteoritos e os esquimós. As autoridades, previdentes e astutas, cobraram bilhete pelo acesso a bordo e milhares de visitantes observaram de perto, extasiados, a nova espécie humana. As duas crianças do grupo, Aviaq e Minik, foram as estrelas do dia e não faltou quem lhes desse carradas de rebuçados e amendoins, sendo tantas as guloseimas que ao fim de poucas horas os dois esquimozinhos, claro está, adoeceram da barriga.

Os mais velhos olhavam pasmados para a multidão em redor, acostumados que estavam a grupos bem mais pequenos: na sua terra natal, a comunidade tinha umas 230 almas, no máximo. Imagina-se o que terão sentido ao ver tanta gente junta, pessoas de várias cores e feitios, vestidas de um modo estranho. Peary disse-lhes que os 30 mil seres humanos que os visitaram nos dois primeiros dias de estada em Nova Iorque eram uma ínfima parcela de toda a população da América, que o mundo era muito maior e mais vasto do que alguma vez pensaram.

Colocou-se, então, o problema da habitação. Os seis esquimós foram alojados nas caves do Museu Americano de História Natural, mas nem aí se livraram da curiosidade alheia, e os funcionários tiveram de avisar repetidamente os visitantes que, por ora, as gentes polares ainda não estavam em exibição. De seu lado, os esquimós apreciaram sobremaneira as mulheres americanas, chegando a propor casamento a várias delas; noutros casos, e ao jeito polar, sugeriram aos maridos que trocassem os casais, e algo mais. Nas ruas da cidade imensa, maravilharam-se ao ver cavalos a puxarem as carruagens. Desconheciam tais bichos, chamaram-lhes "cães grandes".

Não tardou muito que adoecessem uns atrás dos outros. Apesar de ser Inverno e fazer frio em Nova Iorque, acharam o calor da cidade opressivo, deram-se mal com a humidade, a gripe rapidamente degenerou em pneumonia. Nas caves do Museu de História Natural, ainda tentaram convocar os espíritos através de ritos antiquíssimos celebrados pelo xamã de serviço, Atangana, a anciã do grupo. Curiosamente, seria ela a primeira a adoecer com mais gravidade e, ao fim de poucos meses, dos seis esquimós pouco restava: quatro tinham morrido em cadência rápida, e outro, mais afortunado, conseguira regressar a casa. Sobrava apenas o pequeno Minik, que tivera a desventura de ver morrer o seu pai e de o enterrar num funeral muito discreto, realizado ao lusco-fusco.

A criança foi entregue aos cuidados de um funcionário do museu, William Wallace, que cuidou dela com o maior desvelo. Sem nunca o ter adoptado formalmente, o casal Wallace tratou Minik como se fosse um filho, pô-lo a estudar, levou-o em temporadas para a sua casa de campo, contratou explicadores para aulas particulares. Minik cresceu em paz, era uma criança alegre e de fáceis amizades, um menino igual aos outros, que todas as manhãs odiava ter de se levantar da cama para ir à escola. Raramente, quase nunca, falava da terra em que nascera e da família que lá deixara.

A tragédia, contudo, voltou a bater-lhe à porta. Por causa de umas negociatas, William teve de se demitir do emprego no museu nova-iorquino e, não muito depois, a sua mulher faleceu tuberculosa. Com a família reunida junto ao leito de morte, Rheta Wallace reservou o seu último olhar e o seu último sorriso para o pequeno Minik, prova do amor genuíno que sempre lhe tivera.
Viúvo e sem emprego, obrigado a vender os seus bens, William Wallace não podia mais pagar os estudos de Minik. Fizeram-se diligências, contactou-se o milionário mecenas do Museu de História Natural, chegou-se até à fala com o secretário do presidente Roosevelt, mas nada aconteceu e o pequeno esquimó, já quase adolescente, sentia que era um fardo cada vez mais pesado para o seu benfeitor.

Aconteceu então o pior. No recreio da escola, vá-se lá saber como e porquê, Minik veio a saber que os restos mortais do seu pai não tinham sido enterrados. Que o funeral a que assistira fora um embuste, com um caixão vazio, carregado de pedras para fazer peso, e um enterro semiclandestino, feito ao lusco-fusco, longe dos olhares da imprensa. Tudo não passara de uma encenação para esconder-lhe a terrível realidade dos factos: o corpo de Qisuk, o pai de Minik, fora levado para um hospital, o cérebro retirado e metido em formol, a carne extraída dos ossos.

O esqueleto limpinho foi depois entregue ao Museu de História Natural, que o colocou numa armação feita de propósito para ele, com o intuito de o expor ao público, exibido numa vitrina como se fosse um animal pré-histórico ou uma besta selvagem. Nesta tramóia sórdida participaram os directores e os médicos do Hospital de Bellevue, o mais antigo estabelecimento hospitalar de Nova Iorque, e os directores e altos funcionários do Museu Americano de História Natural, incluindo um dos antropólogos mais famosos de todos os tempos, Franz Boas, e até William Wallace, o extremoso protector do pequeno esquimó. A imprensa fez manchete com a história, entrevistaram Franz Boas, que se mostrou evasivo, e o director do museu, que se embrulhou numa explicação patética, jurando a pés juntos que o museu não tinha o "corpo" de Qisuk. Interpelado sobre os seus ossos, disse não ter a certeza se os tinham nem onde paravam.

Minik jamais chegou a recuperar as ossadas do pai. Cresceu, fez-se homem, nunca arranjou emprego fixo nem pouso seguro, começou a abusar do álcool, fugiu uns tempos para o Canadá numa tentativa desesperada de rumar ao Norte. A criança alegre de outrora deu lugar a um jovem adulto triste e sombrio, mergulhado na solidão de si mesmo. Em 1909, conseguiu finalmente que o levassem até à sua terra natal, onde foi recebido em festa. Numa cultura oral como a dos esquimós, 12 anos de afastamento não representavam nada, e eram muitos os que ainda se lembravam de Minik ou que tinham ouvido histórias sobre a sua partida num enorme barco, um caiaque com madeira e mastros. Minik procurou adaptar-se: participava nas caçadas, arranjou esposa, tentou assentar. Mas, como é evidente, aquele não era já o seu mundo. Com frequência, escapava com o trenó e os cães em jornadas solitárias de dias ou semanas pelo gelo dentro. E abandonou a mulher, por considerá-la preguiçosa e pouco prendada nas lides domésticas.

Dilacerado entre dois universos tão distintos, sendo incapaz de viver na América buliçosa e na Gronelândia natal, Minik acabaria por regressar aos Estados Unidos. Pediu a cidadania norte-americana, deu o nome para a tropa, mas nem essas provas de boa conduta foram capazes de o resgatar do seu destino. Os últimos tempos de vida, passados com uma família amiga numa quinta em New Hampshire, foram talvez os mais felizes da sua trágica existência. Morreu em Outubro de 1918, vitimado pela pneumónica.

Durante muitos anos, o Museu Americano de História Natural procurou ocultar os esqueletos dos esquimós e o seu envolvimento nesta saga de desumanidade e de horror. Sucessivos directores negaram diversos pedidos de informação, centenas ou milhares de funcionários, muitos deles cientistas, participaram activamente na mentira ou foram cúmplices dela, por omissão e silêncio. Só em 1993, graças aos esforços de Kenn Harper, autor do impressionante livro Give Me My Father's Body, os despojos de Qisuk e dos seus companheiros foram devolvidos à Gronelândia.

Vencidas as reservas iniciais da Igreja luterana em receber num templo cristão os restos mortais de quatro pagãos, o funeral realizou-se na presença de um sacerdote, das autoridades locais e, em sinal de arrependimento, de um representante do Museu Americano de História Natural, além de vários membros da comunidade esquimó (ou inuíte, como agora se diz). Junto às campas, colocou-se uma placa dizendo "Regressaram a Casa" e, quatro anos depois, em 1997, por ocasião do centenário da partida dos esquimós para Nova Iorque, a rainha da Dinamarca e o príncipe Henrik prestaram-lhes solenes homenagens.

As coisas parecem, assim, mais pacificadas. No entanto, num extenso e recentíssimo artigo na The New York Review of Books, dá-se conta de que Nunavut, um território semiautónomo do Canadá onde vivem cerca de 28 mil inuítes, tem a maior taxa de suicídio do mundo. Na Gronelândia, onde a população é esmagadoramente esquimó, a taxa de suicídio é de 85 por 100 mil, muitíssimo acima do outro país-suicida, a Lituânia, com 32 por 100 mil. Em Nunavut a taxa é ainda mais elevada do que na Gronelândia, com 100 por 100 mil, dez vezes mais do que no resto do Canadá, sete vezes mais do que nos Estados Unidos.

Têm sido avançadas várias explicações para este fenómeno aterrador, que surge ao lado de outros flagelos: homicídio, violência doméstica, alcoolismo, abuso de menores, vandalismo. Diz-se que uma causa próxima foi a deslocação dos inuítes para os centros urbanos, levada a cabo nos anos 1950 e 60 através de programas de habitação social que visaram pôr cobro aos efeitos da Grande Depressão e do declínio de actividades tradicionais como o comércio de peles. O certo é que a tendência suicidária é relativamente recente, datando de meados da década de 1980, e a partir daí tem vindo sempre a subir, afectando sobretudos os jovens entre os 15 e os 24 anos.

Como agora é frequente, há quem atribua a causa desta tragédia ao surgimento do comandante Peary, e ao facto de, desde o século XIX, as terras polares terem sido alvo da cobiça de muita gente, gente que explorou os esquimós e lhes destruiu a sua cultura tradicional e o seu modo de vida. É uma explicação plausível, sobretudo se tivermos em conta o impacto causado pelos ocidentais naqueles povos remotos. Em Estéthique du Pôle Nord, o ensaísta Michel Onfray refere que a colonização destruiu, acima de tudo, o valor do tempo na vida dos esquimós. Até então, os inuítes viviam sob a égide do tempo climatológico, orientavam as suas existências consoante as estações do ano e a luz do dia. O Ocidente impôs um novo tempo, mais rígido, com horários e tarefas a cumprir, fossem quais fossem as circunstâncias atmosféricas. A vivência do tempo, num certo sentido, foi "desnaturalizada", uniformizada pelo bater do relógio, pelo "inexorável minuto" de que falou Rudyard Kipling. O tempo dos inuítes, segundo Michel Onfray, foi também dizimado pela sedentarização e pela urbanização, que impuseram ritmos novos, bem diferentes dos praticados aquando do nomadismo e da eterna errância.

Muito disto será verdade, mas devemos perguntar até que ponto não existe também uma certa idealização de um passado idílico, mais imaginário do que real, onde não havia maldades, assassínios, escravaturas, como se as mulheres inuítes, por exemplo, não fossem tratadas pelos companheiros como moeda de troca ou espezinhadas como servas sexuais de vários homens. Se tomarmos a história de Minik como exemplo ilustrativo da colonização, concluiremos que, como nos diz o insuspeito Kenn Harper, atrás citado, a vida dos inuítes de Melville Bay melhorou substancialmente com a chegada dos ocidentais, sobretudo se a compararmos com a de outras comunidades esquimós do sul da Gronelândia que, não tendo merecido a visita dos exploradores europeus e americanos, permaneceram num estado de pobreza extrema, sem utensílios básicos, com uma mortalidade altíssima, sobretudo entre as crianças.

A traços muito largos, passou-se da mortalidade infantil para o suicídio adolescente, e essa transição deveu-se muito, muitíssimo, à entrada em cena do homem branco nas regiões polares. A história de Minik só prima por ser tão cruel, mas constitui uma trágica metáfora dos dramas do colonialismo. Importa, porém, não ver as coisas de uma forma tão maniqueísta e simplista, como se a realidade fosse a preto e branco. Houve gente que fez muito mal a Minik e aos outros esquimós, mas também houve gente que se apiedou do pequeno inuíte e o tratou com a dignidade que merecia. Sacerdotes e leigos que Minik encontrou nas suas andanças pela América e pelo Canadá, e que lhe deram abrigo, jantar e emprego, uma actriz da Broadway que se interessou por ele, o cônsul da Dinamarca em Nova Iorque, que várias vezes se inteirou da sua situação, a imprensa que fez manchete com a horripilante história do esqueleto paterno e que logo na altura, alvores do século XX, manifestou a sua indignação pela desumanidade praticada. Se este caso é metafórico, deve sê-lo em toda a sua extensão, no mal e no bem.

A história do passado negro dos povos - de todos os povos - deve ser estudada, conhecida e ensinada nas escolas, até como lição para os mais jovens. Não deve, porém, converter-se em processo judicial nem em programa político. Os antigos povos colonizados, que são independentes há muitas décadas, não podem passar a vida a culpar os dominadores brancos por tudo o que de mal lhes acontece agora, até porque isso é ilusório, desresponsabilizante, e continuar agarrado ao passado é a melhor forma de nada mudar no presente (por exemplo, combatendo a miséria ou a corrupção reinantes). Os antigos colonizadores, por seu turno, devem abandonar preconceitos e largar a tendência, que ainda hoje persiste, de querer manter o passado imperial sob novas e mais dissimuladas formas de dominação. Mas uma criança alemã que hoje nasça em Berlim não tem de passar o resto da vida a expiar culpas e a flagelar-se pelos avós terem sido cúmplices do Holocausto, até porque em muitos casos não foram, foram pessoas dignas e íntegras, que se portaram à altura daqueles tempos de trevas. A China é actualmente o maior fabricante de bíblias do mundo. É esse o colonialismo dos nossos dias, é com ele que nos devemos preocupar.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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