O problema catalão
Espanha vive, sem dúvida, a maior crise institucional e política desde 1975, ano da morte do generalíssimo Franco e, consequentemente, em que teve início a chamada transição espanhola, também conhecida por transição democrática.
O destino fez que a crise estalasse 40 anos após a assinatura do Pacto de Moncloa, o qual determinou outros tantos anos de democracia e desenvolvimento nas 17 comunidades autónomas e forais e nas duas cidades autónomas, Ceuta e Melilla, ambas no Norte de África. O dito pacto consistiu na implementação de um programa jurídico e político de saneamento e reforma da economia, e que foi muito justamente considerado paradigma de diálogo e convivência, já que sentou a uma mesma mesa nacionalistas bascos e catalães em conversa franca e aberta com Madrid. Dele resultaram medidas da maior importância, tais como a abolição da censura, a derrogação do crime de adultério, a liberdade de imprensa e de expressão e o direito de reunião. O Pacto de Moncloa marcou indubitavelmente o nascimento de uma nova Espanha e abriu caminho rumo à integração europeia, facto que se verificou, tal como com Portugal, em 1986.
No passado, Adolfo Suárez, Leopoldo Calvo-Sotelo (UCD), Felipe González (PSOE), Santiago Carrillo (PCE), Juan de Ajuriaguerra (Partido Nacionalista Basco), Miguel Roca (Convergência Democrática da Catalunha, hoje PD e CAT), Josep Maria Triginer (Socialistas da Catalunha) e Joan Reventós (Convergência Socialista da Catalunha), entre outros, conseguiram efetivamente um pacto considerado por muitos impossível de alcançar, porque as divergências ideológicas eram muitas e aparentemente insanáveis mas, para além de políticos, os homens que enumerei eram todos eles senhores de elevadíssimo sentido de serviço público.
E, como não há bem que sempre dure, passados 40 anos a crise voltou. Ela aí está em toda a sua crueza e com outras personagens. O diálogo, tão dificilmente conseguido na segunda metade dos anos 70, tornou-se muito difícil, senão mesmo impossível, e extremaram-se as posições. Refiro-me, já se vê, à Catalunha, comunidade autónoma de grande riqueza económica que representa nada menos que 20% do PIB espanhol e com património cultural dificilmente superável, para não dizer incomparável.
Os efeitos políticos da desigualdade económica aumentaram o interesse e a discussão por um sistema adequado para Espanha, levando a que as autonomias quisessem evoluir para o federalismo. Fazer uma reforma constitucional afigura-se-me, pois, a via política que poderá evitar eventuais confrontos nas ruas e, desse modo, precaver o regresso aos tempos da Segunda República (1931--1939), cuja insubordinação popular quase diária, sobretudo entre 1933 e 1936, desencadeou a Guerra Civil (1936-1939), com as funestas consequências de todos bem conhecidas e, como é óbvio, supressão das autonomias pelo regime franquista.
O caminho trilhado por Mariano Rajoy, com ativação do célebre artigo n.º 155 da Constituição, foi provavelmente a pior das soluções políticas para sanar o conflito catalão. Pode ter agora o apoio dos Estados membros da União Europeia, mas esse apoio é encoberto pela pressão dos bastidores para se encontrar uma solução política e não jurídica.
Todas as medidas decretadas para a destituição do Parlamento catalão, e para as deposições do presidente da Generalitat (Carles Puigdemont), do vice-presidente (Oriol Junqueras), dos conselheiros e do mayor da polícia catalã (Mossos d"Esquadra), bem como o encerramento de toda a estrutura de representações no estrangeiro da Catalunha (exceto a de Bruxelas), constituem tiros de pólvora seca. Nada resolvem e, a meu ver, agitam ainda mais as águas do nacionalismo de outras autonomias.
Carles Puigdemont, para já, conseguiu que todo o mundo mediático acompanhasse e comentasse o referendo catalão, assim como a declaração unilateral de independência. Além disso, provocou a discussão em fóruns internacionais do direito à independência das autonomias de várias matizes. Creio que não faltará muito para rebentar aqui ou ali, nos lugares mais insuspeitos da Europa comunitária, outro movimento independentista suscetível de desestabilizar países aparentemente sólidos como França, onde o respetivo País Basco (Labourd, Soule e Baixa-Navarra) nunca foi pacífico, ou Itália (Lombardia e Venécia). A atitude de Carles Puigdemont é a de um estadista que pede diálogo, a fim de obter uma sã convivência com Espanha dentro de um regime constitucional diferente - republicano.
Espanha precisa de um mediador internacional para a questão catalã e a pessoa indicada talvez devesse ser um ex-chefe de governo ou de Estado da União Europeia. Uma proposta destas devia ser sugerida, em minha opinião, pelo presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk.
Esconder-se do problema, como faz o rei, não resolve a crise da Catalunha. E muito menos se resolve com a prisão das principais figuras do secessionismo pelos crimes de rebelião, desobediência e prevaricação, cuja moldura penal pode ir até aos 30 anos de prisão. Dialogar é firmar um acordo com a Catalunha que permita um referendo nacional em todas as autonomias sobre a reforma constitucional e que conduza Espanha a uma federação de estados autónomos. O referendo deveria realizar-se no prazo máximo de um ano, mantendo ao mesmo tempo as instituições políticas daquela vasta região pirenaico-mediterrânica. Obviamente que dialogar pressupõe, desde logo, a não existência de políticos presos, como é o caso dos dois Jordis (Cuixart e Sànchez), a cumprirem prisão preventiva em Soto del Real, em Madrid. Só assim será possível uma Espanha integrada, pois outra solução não creio que possa existir para o problema catalão.
Sócio/partner da Dantas Rodrigues & Associados