O primeiro dia sem ETA
Nunca levei com um tiro na nuca. Nunca explodi num carro armadilhado nem perdi partes do corpo ao tentar abrir uma carta. Também não estive sequestrado num buraco, e nem sequer fui vítima de extorsão ou alvo de ameaças. Por sorte, não vivi de perto o horror daquilo a que a ETA define agora como simples "trajetória" - mais um eufemismo numa organização que continua a confundir assassínios com uma pretensa luta pela liberdade, e que foi muito mais implacável com os governos eleitos democraticamente do que tinha sido contra o franquismo (durante a ditadura causaram 5% das 854 mortes registadas).
Nunca presenciei um atentado, mas aos sete anos caí da secretária abalado pela onda expansiva de uma bomba colocada à porta do colégio onde estudava, no centro de Madrid. A minha casa ficava a 500 metros do quarteirão onde a ETA tinha perpetrado o atentado político mais importante em 50 anos de existência: a morte do delfim de Franco num carro que voou, literalmente, pelos ares.
Cresci num país cheio de esperança e de vontade de ultrapassar as tristes décadas de autoritarismo - muito semelhante, por este e por outros motivos, a Portugal, mas diferente por causa desta ameaça permanente e indiscriminada: qualquer um podia ser o próximo numa lista com milhares de feridos e famílias desfeitas.
Já adulto, detetei deste lado da fronteira uma admiração espontânea por nuestros hermanos que coexistia com um certo antiespanholismo. Indivíduos de todas as tendências políticas exibiam uma chocante falta de empatia com as vítimas da violência etarra e uma inexplicável condescendência com a última organização terrorista que restava na Europa.
Ontem acordei e a Euskadi ta Askatasuna era, pela primeira vez desde que nasci, um assunto do passado. Não espero nada da sua dissolução definitiva - é uma mera encenação, a derrota é um facto desde 2011 -, mas fico feliz por saber que as gerações futuras não vão enfrentar uma ameaça tão sinistra quanto inútil.
* jornalista