O povo que voltou a cantar

A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria comemora hoje seis anos com um concerto de entrada livre, no Teatro trindade, em Lisboa, ás 17.00. O DN convidou o mentor do projeto, Tiago Pereira, a escolher alguns dos momentos mais marcantes deste percurso
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Foi com um vídeo de Jorge Cruz, dos Diabo na Cruz, a tocar uma guitarra algures em Lisboa, que em janeiro de 2011 o documentarista e realizador Tiago Pereira deu início ao projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPGDP). Desde então, tem percorrido o país de lés a lés, sempre com a mesma missão de recolher e divulgar as mais variadas tradições musicais portuguesas - e especialmente as pessoas que as mantêm vivas. Começou por ser um canal de vídeo na plataforma Vimeo, saltou da internet para a rádio e depois também para a televisão. Os mais de 2600 vídeos gravados de norte a sul do país (ilhas incluídas), estão a partir de agora disponíveis num novo portal (amusicaportuguesaagostardelapropria.org), onde passará a ser possível pesquisar por instrumento, região, género ou realizador e ainda viajar pelo país de distrito em distrito. Vai ser apresentado hoje no Teatro da Trindade, em Lisboa, durante a festa do sexto aniversário da MPGDP, onde também será apresentado o livro O Povo Que ainda Canta, seguindo-se uma atuação de Josefina Bouças, do grupo Cantadeiras do Vale do Neiva, que vai ensinar aos presentes a arte da polifonia minhota. "Nada disto seria possível sem as pessoas que me levam e mostram tudo aquilo que gravo", afirmou Tiago Pereira ao DN, quando convidado a escolher alguns dos melhores momentos vividos nestes seis anos. São elas que também são recordadas nas linhas que se seguem, em discurso direto do próprio realizador...

Tia Benedita e Penteei o meu cabelo

Conhecia o Ricardo Santos nos Velha Gaiteira, que foi das primeiras gravações que fiz para a MPAGDP. Ele era de uma aldeia da Beira Baixa e tinha uma fixação total pela Tia Benedita, que me cantou a versão beirã de uma canção também muito conhecida no Alentejo, chamada Penteei o meu Cabelo. Foi um momento importante por isso, mas também muito bonito, porque muitas vezes há uma grande confusão em relação ao meu trabalho, que é erradamente encaixado naquela lógica de alguém que quer gravar e eu faço muito mais que isso: filmo, enceno situações, promovo encontros. Fiz este aparte porque há um momento com a Tia Benedita, quando está a cantar encostada a uma oliveira centenária e de repente interrompe para escarrar. E isso fica gravado e entra no filme, porque acaba por funcionar como um assumir de posição da minha parte, a dizer que não gravo apenas música, faço documentários...

Local: São Miguel d"Acha, Idanha-a--Nova, Castelo Branco

Sophie Coquelin e o Baile da Meia Volta

A Sophie é uma musicóloga francesa que veio trabalhar há cerca de dez anos para Associação Pé de Chumbo e ajudou na pesquisa para A Sinfonia Imaterial, um trabalho que fiz para a Fundação Inatel e está na génese da MPAGDP. Foi ela quem me falou do Grupo Folclórico de Porto Santo, que tinha gravado um disco completamente inacreditável. Quando vi a capa, com eles todos vestidos de branco e uns moinhos atrás, disse--lhes logo que não os queria filmar, mas como estava em Porto Santo e estava marcado acabei por ir. Quando lá cheguei estava uma mulher com o marido e começam ambos a cantar o Baile da Meia Volta de uma forma que nunca tinha ouvido. Só me apetecia esconder num buraco e chamar nomes a mim próprio, porque foi um daqueles momentos em que aprendemos com os nossos preconceitos e, ao mesmo tempo, uma grande lição, que veio a revelar-se muito valiosa.

Local: Porto Santo, Madeira

Ana Amélia Dutra e a guitarra portuguesa

Numa altura em que estava nos Açores, o Miguel Pietá, dos Bandarra, levou-me a casa de um casal, na ilha do Faial, para os ouvir a tocar viola da terra e cantar as chamarritas. A dada altura, o homem olha muito sério para mim e pergunta--me se quero ver uma senhora de 90 anos que toca guitarra portuguesa. Eu respondo que sim e pergunto se ele tem uma fotografia, mas de repente aparece à minha frente uma senhora de óculos, com um véu a tapar-lhe a cara e uma guitarra portuguesa na mão, que começa a tocar de forma espetacular. Chamava-se Ana Amélia Dutra e já tinha tido uns quantos AVC, já nem se lembrava do nome da filha, mas continuava a saber as notas todas. Foi um momento impressionante, que só foi possível porque há pessoas que nos levam a estes sítios, que de outra forma nunca descobriríamos.

Local: Cedros, ilha do Faial, Açores

O Ti Carlos e os seixos do rio

Foi a Dora Assis, que na altura tinha uma associação cultural em Portalegre e agora tem um bar, quem finalmente me levou a um senhor de quem já tinha ouvido falar e até tentado filmar, mas por uma razão ou por outra nunca tinha conhecido. Trata-se do senhor Carlos das Pedrinhas de Arronches, que tem essa capacidade magnífica de pegar em seixos do rio e conseguir tocar saias. Quando lhe perguntei como aprendeu a tocar, respondeu que foi o irmão que um dia lhe disse que devia ser engraçado fazer música com aquelas pedras. Naquele momento lembrei-me de que cresci a ouvir o meu pai dizer que os portugueses são um povo espetacular, que consegue fazer música com qualquer coisa e lá estava o senhor Carlos a provar-me isso mesmo.

Local: Arronches, Portalegre

José Craveiro e a gaita-de-foles

O ano de 2014 teve muitos encontros, porque comecei a preparar as gravações do programa O Povo Que ainda Canta. Um dos mais importantes foi com o António Freire, que vive em Coimbra e conhece todos os gaiteiros da região. Foi ele quem me permitiu gravar um episódio inteiro dedicado aos gaiteiros de Coimbra. Uma das histórias mais interessantes que ele me deu a conhecer foi a de dois irmãos da aldeia de Chelo. Um deles era um gaiteiro incrível, mas como passava o dia na taberna, as pessoas da aldeia chamavam-no de bêbado e toda a gente se riu dele quando disse que ia aparecer na televisão a tocar gaita-de-foles, mas apareceu mesmo. E a irmã cantava um canto modal daquela região, que ela dizia ter aprendido com uma freira do mosteiro de Lorvão.

Local: Chelo, Penacova, Coimbra

Sendim e o dançar repasseado

Uma das grandes questões da música tradicional portuguesa é a origem das coisas, porque é sempre uma versão de uma versão de outra versão, que varia consoante as regiões e raramente se consegue chegar à fonte original. Desde há uns tempos que muita gente começou a dançar repasseado e outros bailes tradicionais, mas uma coisa é fazê--lo em Lisboa e outra é vê-lo acontecer de uma forma espontânea. E quando fomos a Miranda do Douro pedimos ao Mário Correia, do Centro de Música Tradicional Sons da Terra, para nos indicar alguém para gravarmos. E ele apresentou-nos o Grupo de Cantares de Sendim L"Alma, em que assisti a algo inesquecível, quando um homem dos seus 70 anos começa a dançar a uma velocidade frenética, ao mesmo tempo que tocava gaita-de-beiços. É uma imagem que ainda hoje mexe comigo, porque contrasta com essa nova tendência de tentar coreografar estas danças, com passos todos certinhos.

Local: Sendim, Miranda do Douro, Bragança

Vermilhas e o pai-nosso polifónico

Esta história tem como protagonista o Paulo Pereira, que é músico e já pertenceu a vários grupos, como Uxu Kalhus. Foi ele que em 2011 me levou a Arões, para mostrar a polifonia do Grupo Folclórico de Vale de Arões. Anos mais tarde desafiei-o outra vez para vir comigo fazer o episódio do Povo Que ainda Canta dedicado à polifonia. E foi aí que conheci um grupo fundamental, em Carvalhal de Vermilhas, que nos cantou um pai-nosso incrível em polifonia. Foi aí que percebi que isto da Unesco é só mesmo um rótulo, porque há tantas outras coisas que também mereciam ser património imaterial. É o caso destes cantos polifónicos.

Local: Carvalhal de Vermilhas, Vouzela, Viseu

Papoilas e as suas vozes antigas

Além do trabalho incrível que tem feito com o cante alentejano, o Pedro Mestre tem sido muito importante para mim, porque é um dos meus maiores dealers de velhinhas, que é como eu chamo a quem me leva às pessoas que eu gravo. E foi também ele quem me mostrou as Papoilas do Corvo, um grupo de mulheres que cantam, lá está, o Penteei o Meu Cabelo, agora na versão alentejana. E são impressionantes, porque têm aquelas vozes muito antigas, todas esganiçadas, mais conotadas com o Minho, mas que também sempre existiram no Alentejo, embora sejam cada vez mais raras.

Local: Aldeia do Corvo, Castro Verde

Irmãos de Chaves e as cantigas da segada

O Marcelo Almeida, que tem a Academia de Artes de Chaves, levou-me a uma aldeia para conhecer dois velhos irmãos, António Ferreira e Cândido Correia, que cantam cantigas da segada à maneira antiga. E fizeram-no de um modo completamente inacreditável, que mais parecia uma instalação artística, digna de estar presente em qualquer museu de arte contemporânea. Ou seja, eles fizeram uma recriação só com os instrumentos, mas como não tinham palha nem estavam a segar, faziam apenas os movimentos enquanto cantavam. Parecia mesmo dança contemporânea, mas com dois velhos a cantar. Gravei-os durante 47 minutos seguidos e fiz um programa de rádio só com eles.

Local: Cela, Chaves, Vila Real

Ciganos de Elvas e o fado

Esta é uma história muito forte. A Cátia Terrinca, da associação Um Coletivo, que na altura estava a organizar um festival de artes em Elvas, convidou-nos a ir lá, gravar os ciganos de Elvas. Fomos a dois bairros, um deles bastante duro e degradado, onde nem sequer os serviços de saneamento da câmara entravam. Fomos com o Rui Salabarda, que é de Elvas, e quando lá chegámos fomos surpreendidos com as ruas todas limpas pelos próprios habitantes do bairro. Como já era tarde e não tínhamos luz suficiente, acenderam os faróis dos carros para filmarmos e foi nessa altura que gravei um miúdo de 6 anos que parecia ter encarnado num fadista. A força daquele vídeo foi de tal ordem que se tornou viral nas redes sociais e os ciganos foram mesmo convidados pela câmara para dar um concerto na biblioteca de Elvas. O que é uma ironia, tendo em conta que o município não lhes limpa as ruas, mas convida-os para atuarem numa das salas mais nobres da cidade. A música tem também este lado conciliador.

Local: Bairro de São Pedro em Elvas, Portalegre

André e Filipe o futuro assegurado

Esta história aconteceu há pouco tempo, quando estava a almoçar em Alcáçovas com a Gertrudes Garcia, do Grupo Coral e Etnográfico Paz e Unidade, que tinha estado a gravar durante a manhã toda. Já estávamos sentados, no restaurante, quando começo a ouvir umas vozes estranhas. Parecia-me cante alentejano, mas não percebia bem se estava a tocar na rádio ou de onde vinha. Até que olho para a rua e vejo dois miúdos, de 6 e 8 anos, a cantarem brutalmente. Fui ter com a mãe deles e disse-lhe que os queria gravar. E ela deixou. O André e o Filipe são a prova viva de que o povo vai voltar a cantar e, de uma forma simbólica, encerram este ciclo de seis anos.

Local: Alcáçovas, Viana do Alentejo

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