O povo é soberano
Em outubro passado o Orçamento do Estado não foi aprovado na Assembleia da República devido a uma coligação negativa de votos (quando um conjunto de forças contrárias entre si se organizam, por motivos diferentes, para derrotar um terceiro).
Esta coligação negativa levou-nos a um impasse que durará cerca de cinco meses, em que o país se atrasará no cumprimento de alguns objetivos. Essa coligação levou a uma derrota de quase todos os seus intervenientes e não só. À esquerda, PCP e Bloco de Esquerda viram piorar as suas representações parlamentares de forma drástica. O PEV e o CDS perderam a representação parlamentar. O PAN quase que desaparecia do parlamento, apesar de não ter participado nessa coligação. Os novos partidos da direita, Iniciativa Liberal e Chega, aumentaram de forma assinalável os seus representantes. O PSD não conseguiu melhor do que o que já tinha e o PS ganhou de forma estrondosa as eleições, conseguindo uma maioria absoluta supostamente imprevisível.
Toda esta análise é factual e fácil agora que passaram as eleições. Mas nas duas semanas que antecederam as mesmas, a maioria das empresas de sondagens, dos analistas e muitos jornalistas desdobraram-se na emissão de estudos e opiniões que davam como certo o fim político de António Costa e a ascensão de Rui Rio à liderança do país.
No período de campanha, na tentativa de se autoconvencerem, o Bloco de Esquerda apregoava que continuaria a terceira força política e a CDU que o seu eleitorado continuaria imutável não descendo abaixo dos mínimos; o PAN que seria relevante para a maioria governativa; o Chega que chegaria aos 10%; o PSD que chegaria ao governo; o líder do CDS que seria ministro da Defesa e a Iniciativa Liberal que cantaria vitória com dois deputados.
Passadas quase duas semanas sobre a maioria absoluta de António Costa e a reconfiguração do parlamento, quase nenhum analista se veio retratar nem nenhuma empresa justificou o desaire dos resultados das sondagens divulgadas nas semanas de campanha. Era o mínimo que se exigia em respeito pelos eleitores. Os líderes derrotados, os analistas e os comentadores de rede social acusam o povo de gostar de sofrer, de não ter cabeça e de querer contribuir para a ausência de mudança que acham que o país tanto precisa.
Acontece que o povo é soberano e escolheu a continuidade, reforçando o poder da liderança e afastando, inclusive, os que tanto dizem falar em nome do povo. Os eleitores que vivem nos meios mais urbanos e nos meios desprotegidos dos territórios mais frágeis escolheram dar a António Costa o poder de governar sem ter de ceder a exigências terceiras. E voltaram a não alinhar com os intelectuais que pretendem ser líderes de opinião.
Talvez valha a pena respeitar o povo, esperar que as suas escolhas se revelem as melhores e acreditar que a maioria absoluta pode não ser assim tão negativa. Afinal, Cavaco teve direito a duas seguidas e sobrevivemos, ao ponto de ser premiado com mais duas maiorias enquanto Presidente da República. O povo é soberano e desrespeitar o povo não é bonito.
Presidente do Instituto Politécnico de Coimbra